1. Dados gerais
As cantigas trovadorescas galego-portuguesas são um dos patrimónios mais ricos da Idade Média peninsular. Produzidas durante o período, de cerca de 150 anos, que vai, genericamente, de finais do século XII a meados do século XIV, as cantigas medievais situam-se, historicamente, nas alvores das nacionalidades ibéricas, sendo, em grande parte contemporâneas da chamada Reconquista cristã, que nelas deixa, aliás, numerosas marcas. Tendo em conta a geografia política peninsular da época, que se caracterizava pela existência de entidades políticas diversas, muitas vezes com fronteiras voláteis e frequentemente em luta entre si, a área geográfica e cultural onde se desenvolve a arte trovadoresca galego-portuguesa (ou seja, em língua galego-portuguesa) corresponde, latamente, aos reinos de Leão e Galiza, ao reino de Portugal, e ao reino de Castela (a partir de 1230 unificado com Leão).
Nas origens da arte trovadoresca galego-portuguesa está, indiscutivelmente, a arte dos trovadores provençais, movimento artístico nascido no sul de França em inícios do século XII, e que rapidamente se estende pela Europa cristã. Compondo e cantando já em língua falada (no caso, o occitânico) e não mais em Latim, os trovadores provençais, através da arte da canso, mas também do fin’amor que lhe está associado, definiram os modelos e padrões artísticos, mas também genericamente culturais, que se irão tornar dominantes nas cortes e casas aristocráticas europeias durante os séculos seguintes. Acompanhando, pois, sem dúvida, um movimento europeu mais vasto de adoção dos modelos occitânicos, a arte trovadoresca galego-portuguesa assume, no entanto, características muito próprias, como explicitaremos mais abaixo, e que a distinguem de forma assinalável da sua congénere provençal, desde logo pela criação de um género próprio, a cantiga de amigo.
No total, e recolhidas em três grandes cancioneiros (o Cancioneiro da Ajuda, o Cancioneiro da Biblioteca Nacional e o Cancioneiro da Biblioteca Vaticana), chegaram até nós cerca de 1680 cantigas profanas ou de corte, pertencentes a três géneros maiores (cantiga de amor, cantiga de amigo e cantiga de escárnio e maldizer), e da autoria de cerca de 187 trovadores e jograis. Da mesma época e ainda em língua galego-portuguesa, são também as Cantigas de Santa Maria, um vasto conjunto de 420 cantigas religiosas, de louvor à Virgem e de narração dos seus milagres, atribuíveis a Afonso X. Tendo em comum com as cantigas profanas a língua e eventualmente espaços semelhantes de produção, as Cantigas de Santa Maria pertencem, no entanto, a um tradição cultural bem distinta, motivo pelo qual não integram a presente base de dados.
2. A Língua
O Galego-Português era a língua falada na faixa ocidental da Península Ibérica até meados do XIV. Derivado do Latim, surgiu progressivamente como uma língua distinta anteriormente ao século IX, no noroeste peninsular. Neste sentido, poderemos dizer que, mais do que designar uma língua, a expressão Galego-Português designa concretamente uma fase dessa evolução, cujo posterior desenvolvimento irá conduzir à diferenciação entre o Galego e o Português atuais. Entre os séculos IX e XIV, no entanto, e com algumas pequenas diferenças entre modos de falar locais, a língua falada ao norte e ao sul do rio Minho era sensivelmente a mesma. E nem mesmo as fronteiras políticas que por meados do século XII se foram desenhando, e que conduziram à formação de um reino português independente ao sul, parecem ter afetado imediatamente esta unidade linguística e cultural, cujas origens remontam à antiga Galiza romano-gótica. Da mesma forma, a extensão do novo reino português até ao extremo sudoeste da Península (que se desenrola, até 1250, ainda no movimento da chamada reconquista cristã), é um processo que pode ser entendido, nesta primeira fase, como um alargamento natural desse espaço linguístico e cultural único. Assim, como escreve Carolina Michaëlis de Vasconcelos, comentando este sentido alargado que dá ao termo Galego-Português: “Tal extensão de sentido justifica-se pela uniformidade da língua desde o extremo da Galiza até ao extremo do Algarve, apenas com algumas variantes provinciais, dentro de um tipo comum; e também pela grande semelhança de modos de viver, sentir, pensar, poetar – uniformidade e semelhança que falam eloquentemente a favor da afinidade primitiva de lusitanos e galaicos”[Vasconcelos: 1904, II, 780].
Na verdade, pode dizer-se que, paralelamente à independência do reino de Portugal, é a progressiva e lenta deslocação do centro político da Hispânia cristã do noroeste galego-leonês para Castela (nomeadamente após a conquista de Toledo em 1085 e, posteriormente, a conquista de Sevilha em 1248) que conduzirá gradualmente à rutura desta unidade, ao potenciar o desenvolvimento das duas línguas que mais imediatamente correspondiam a entidades políticas autónomas, o Português e o Castelhano. A partir desse momento, que poderemos situar, de forma genérica, em meados do século XIV, o Galego-Português deixa de ser uma designação operacional: de facto, e ao mesmo tempo que a Galiza entra culturalmente no período que habitualmente se designa por “séculos escuros”, com um castelhanismo acelerado das suas elites e sem verdadeira produção cultural em língua própria, o Português assume a sua identidade linguística e cultural autónoma, partilhando a partir de então com Castelhano (e, até certa altura, com o Catalão) o espaço cultural ibérico.
O período que medeia entre os séculos X e XIV constitui, pois, a época por excelência do Galego-Português. É, no entanto, a partir de finais do século XII que a língua falada se afirma e desenvolve como língua literária por excelência, num processo que se estende até cerca de 1350, e que, muito embora inclua também manifestações em prosa, alcança a sua mais notável expressão na poesia que um conjunto alargado de trovadores e jograis, galegos, Portugueses, mas também castelhanos e leoneses, nos legou.
Convém, pois, ter presente, que quando falamos de poesia medieval galego-portuguesa falamos menos em termos espaciais do que em termos linguísticos, ou seja, trata-se essencialmente de uma poesia feita em Galego-Português por um conjunto de autores ibéricos, num espaço geográfico alargado e que não coincide exatamente com a área mais restrita onde a língua era efetivamente falada.
3. Os autores
As cantigas galego-portuguesas são obra de um conjunto relativamente vasto e diversificado de autores, que encontram nas cortes régias de Leão, de Castela (ou de Castela-Leão) e de Portugal, mas também eventualmente nas cortes de alguns grandes senhores, o interesse e o apoio que possibilita a sua arte. Não se trata, no entanto, de um mero patrocínio externo: na verdade, e de uma forma que não mais terá paralelo nos séculos posteriores, os grandes senhores medievais ibéricos não se limitam ao mero papel de protegerem e incentivarem a arte trovadoresca, mas são eles próprios, por vezes, os seus maiores, ou mesmo mais brilhantes, produtores. Como é sabido, dois reis, Afonso X e o seu neto D. Dinis, contam-se entre os maiores poetas peninsulares em língua galego-portuguesa, num notável conjunto de autores que inclui uma parte significativa da nobreza da época, de simples cavaleiros a figuras principais. Ao lado deste conjunto de senhores, designados especificamente trovadores, e para quem a arte de trovar era entendida, pelo menos ao nível dos grandes princípios, como uma atividade desinteressada, encontramos um não menos notável conjunto de jograis, autores oriundos das classes populares, que não se limitam ao papel de músicos e instrumentistas que seria socialmente o seu, mas que compõem igualmente cantigas, e para quem a arte de trovar constituía uma atividade da qual esperavam retirar não apenas o reconhecimento do seu talento mas igualmente o respetivo proveito.
Se bem que o percurso de alguns trovadores, até pelo seu estatuto de figuras públicas, seja bem conhecido, em relação a muitos outros, e também em relação à maioria dos jograis, os dados biográficos de que dispomos são escassos ou mesmo nulos. Na base de dados o leitor encontrará, no entanto, uma curta biografia de cada um, com os dados que a investigação conseguiu apurar até ao momento. Caso surjam novos dados decorrentes dessa investigação, de resto atualmente bastante ativa, eles irão sendo gradualmente disponibilizados.
4. Os géneros
A Arte de Trovar subjacente às cantigas profanas galego-portuguesas é a matéria de um pequeno tratado anónimo transcrito nas páginas iniciais do Cancioneiro da Biblioteca Nacional. Muito embora nos tenha chegado truncada nos seus capítulos iniciais, esta Arte de Trovar, mais prático-didática do que propriamente teórica, fornece-nos um quadro que genericamente se adequa às cantigas que chegaram até nós, nomeadamente quanto aos géneros maiores cultivados por trovadores e jograis.
Assim, os principais géneros da poesia galego-portuguesa profana são a cantiga de amor (canto em voz masculina), a cantiga de amigo (canto em voz feminina) e a cantiga de escárnio e maldizer (cantiga satírica, respetivamente com ou sem equívoco). Paralelamente a estes três géneros principais, os trovadores e jograis cultivaram ainda, se bem que de forma esporádica, alguns outros géneros, como a tenção (disputa dialogada), o pranto (lamento pela morte de alguém), o lai (composição de matéria de Bretanha) ou apastorela (narrativa de um encontro entre o trovador e uma pastora).
Género de registo aristocrático, a cantiga de amor galego-portuguesa segue muito claramente o universo dofin’amor provençal (sobretudo o da fase mais tardia), num modelo que não é apenas formal mas que retoma também uma “arte de amar” que define, em novos moldes culturais e sociais, as relações entre o homem e a mulher, ou, na terminologia usada pelos trovadores à exaustão, entre o poeta servidor e a sua senhor (o chamado “amor cortês”, numa terminologia pouco exata, mas que se tornou tradicional). De forma retoricamente elaborada, a cantiga de amor apresenta-nos assim uma voz masculina essencialmente sentimental, que canta a beleza e as qualidades de uma senhora inatingível e imaterial, e a correlativa coita(sofrimento) do poeta face à sua indiferença ou face à sua própria incapacidade para lhe expressar o seu amor. Se bem que decididamente influenciada pela canso provençal, como se disse, a cantiga de amor galego-portuguesa assume, no entanto, algumas características distintas, desde logo o facto de ser em geral mais curta e de frequentemente (em mais de metade dos casos conservados) incluir um refrão (quando a norma provençal é a cantiga de mestria, ou seja, sem refrão).
Num registo bem mais popular ou burguês, a cantiga de amigo é um género autóctone, cujas origens parecem remontar a uma vasta e arcaica tradição da canção em voz feminina, tradição que os trovadores e jograis galego-portugueses terão seguido, muito embora adaptando-a ao universo cortês e palaciano que era o seu. Desta forma, a voz feminina que os trovadores e jograis fazem cantar nestas composições remete para um universo definido quase sempre pelo corpo erotizado da mulher, que não é agora a senhor mas a jovem enamorada, que canta, por vezes num espaço aberto e natural, o momento da iniciação erótica ao amor. Desta forma a velida (bela), a bem-talhada (de corpo bem feito) exterioriza e materializa de formas várias, formas essas enquadradas numa vivência quotidiana e popular, os sentimentos amorosos que a animam: de alegria pela vinda próxima do seu amigo, de tristeza ou de saudade pela sua partida, de ira pelos seus enganos – os sentimentos que o trovador ou o jogral lhe faz cantar, bem entendido. Compostas e geralmente cantadas por um homem (se bem que possa ter havido igualmente vozes femininas a cantá-las), as cantigas de amigo põem em cena um universo feminino alargado, do qual fazem ainda parte, como interlocutoras da donzela, a mãe, as irmãs ou as amigas. Formalmente, as cantigas de amigo recorrem frequentemente a uma técnica arcaica de construção estrófica conhecida como “paralelismo”, a apresentação da mesma ideia em versos alternados, com pequenas variações verbais nos finais desses mesmos versos, e são quase sempre (em 88% das cantigas conservadas) de refrão.
O terceiro grande género cultivado pelos trovadores e jograis galego-portugueses é o satírico, ou seja, as cantigas de escárnio e maldizer, que representam mais de um quarto do total das cantigas que chegaram até nós. No já referido pequeno tratado sobre a Arte de Trovar que abre o Cancioneiro da Biblioteca Nacional, o seu anónimo autor define-as, genericamente, como cantigas que os trovadores fazem quando querem “dizer mal” de alguém, estabelecendo em seguida uma diferença no que diz respeito ao modo: assim enquanto que nas cantigas de maldizer a crítica seria direta e ostensiva, nas cantigas de escárnio a crítica seria feita de modo mais subtil, “por palavras cobertas que hajam dous entendimentos” (ou seja, num registo de dupla leitura, o “equívoco”, ou hequivocatium, nas palavras do mesmo anónimo autor). Ainda que estes dois modos sejam, de facto, detetáveis nas cantigas conservadas, a nível terminológico esta distinção pode considerar-se, no entanto, mais teórica do que prática: com efeito, os trovadores utilizam muitas vezes a designação genérica “cantigas de escárnio e maldizer” para designarem este género, que claramente se distingue dos outros dois, e que poderemos classificar simplesmente como satírico. Trata-se, de qualquer forma, e na esmagadora maioria dos casos, de uma sátira pessoalizada, ou seja, dirigida a uma personagem concreta, cujo nome, de resto, surge geralmente referido logo nos primeiros versos da composição. Acrescente-se que, embora a Arte de Trovar não o refira explicitamente, nesta arte “dizer mal” trovadoresca (de bem “dizer mal”) o riso é igualmente um elemento fundamental. Tematicamente, as cantigas de escárnio e maldizer abarcam um vastíssimo leque de motivos, personagens e acontecimentos, em áreas que vão dos comportamentos quotidianos (sexuais, morais) aos comportamentos políticos, devendo muitas delas ser entendidas como armas de combate entre os vários grupos e interesses em presença. Formalmente, as cantigas satíricas tendem a ser de mestria, embora quase um terço das conservadas (31%) incluam um refrão.
5. Os manuscritos
No seu essencial, conhecemos as cantigas profanas galego-portuguesas através de três manuscritos. O mais antigo, datável de inícios do século XIV (e, portanto, o único que será contemporâneo da última geração de trovadores), é o Cancioneiro da Ajuda (A), rico manuscrito iluminado, mas que é também o mais incompleto, já que contém apenas 310 composições, na sua esmagadora maioria de um único género, a cantiga de amor. Descoberto na biblioteca do Colégio dos Nobres em inícios do século XIX, e hoje guardado na Biblioteca do Palácio da Ajuda, em Lisboa, pouco sabemos sobre as suas origens ou sobre o seu percurso. Trata-se, de qualquer forma, de um manuscrito que ficou manifestamente inacabado, como é muito visível nas suas iluminuras, muitas delas com pintura incompleta ou mesmo com figuras apenas desenhadas (o mesmo se passando com as iniciais). Os outros dois manuscritos, conhecidos como Cancioneiro da Biblioteca Nacional(B, também chamado Cancioneiro Colocci-Brancuti, o mais completo, guardado em Lisboa, na BNP) eCancioneiro da Vaticana (V, guardado na Biblioteca Apostólica Vaticana), são manuscritos copiados em Itália, nas primeiras décadas do século XVI, sob as ordens do humanista Angelo Colocci, e a partir de um cancioneiro anterior, muito certamente medieval, hoje desaparecido. Uma das cópias mandadas fazer por Colocci (B) destinar-se-ia a uso próprio (como parecem comprovar as numerosas anotações que faz nas suas margens), enquanto a outra (V) se destinaria eventualmente a qualquer oferta. Para além destas três grandes recolhas trovadorescas, chegaram ainda até nós algumas folhas volantes com cantigas, duas delas importantes, já que incluem notação musical, o Pergaminho Vindel e o Pergaminho Sharrer (de que adiante se falará).
De resto, as questões em torno da tradição manuscrita das cantigas galego-portuguesas não são fáceis de deslindar e continuam a suscitar interrogações (e pesquisa). Ao que tudo indica, terá sido D. Pedro, conde de Barcelos, trovador e primogénito bastardo de D. Dinis, o compilador das cantigas que chegaram até nós (através dos apógrafos italianos), talvez o seu compilador final, se aceitarmos, como crê Giuseppe Tavani, que já na corte de Afonso X se teria realizado uma primeira compilação [Tavani: 1986, 65-66]. Seja como for, nunca será demais realçar o mérito do notável trabalho quinhentista de Angelo Colocci, trabalho sem o qual a nossa visão da lírica galego-portuguesa se teria de restringir ao Cancioneiro da Ajuda, ou seja, às cerca de 310 composições de amor já referidas, em lugar das cerca de 1680 de todos os géneros de que dispomos atualmente.
6. A música
Cantiga ou cantar, implica que o texto poético se cantava. A forma como o texto era publicamente apresentado, pressupondo uma emissão melódica e uma audiência, tinha consequências quer na concepção do poema, quer na sua recepção. A intermediação musical impõe que o texto se desvele e se saboreie pouco a pouco, a sua continuação reservando uma e outra surpresa, sugerindo uma ou outra associação; e simultaneamente carrega-o de sinais retóricos e tonalidades afetivas, que preparam, enquadram e condicionam a reação do ouvinte. A eficácia da atuação trovadoresca dependia, pois, quer da bondade do casamento entre poesia e música, quer de uma recetividade educada, socialmente diferenciada e diferenciadora.
A cantiga trovadoresca como um todo dependia, para a sua circulação, sobretudo da memória e do bom ouvido, quer dos autores quer dos jograis que os serviam e, na invenção, os imitavam. Com a vinda de França e entronização de D. Afonso III, é provável que se tenha introduzido a ideia de que, em recolhas de cantigas exemplares, a música, à imagem do texto, podia ser escrita recorrendo a uma notação o mais moderna possível, permitindo a sua visualização e fácil reprodução. Foi neste espírito que se copiaram as cantigas de Martim Codax no Pergaminho Vindel (folha volante ou bifólio central de um caderno, encontrada pelo livreiro madrileno Pedro Vindel em 1913 e posteriormente por ele vendida) e as de Dom Dinis no Cancioneiro perdido de que sobra somente um fragmento, o Pergaminho Sharrer (nome do seu descobridor, o académico Harvey Sharrer, que o localizou na Torre do Tombo em 1990). O mesmo deve ter sucedido a centenas de cantigas; o Cancioneiro da Ajuda foi preparado para receber pautas, mas ficou incompleto, e até hoje não se encontraram outras fontes medievais.
A redescoberta, no século XIX, da tradição lírica galego-portuguesa baseou-se, como antes se disse, em cópias italianas do início do século XVI (Cancioneiros da Biblioteca Nacional e da Biblioteca Apostólica Vaticana), que não reproduziram a música presumivelmente preexistente. Só com a edição de fotografias do Pergaminho Vindel, em 1915, se tornou clara a dimensão da perda. A partir de então, o crescendo nacionalista em Portugal, primeiro em plena época republicana, depois durante o Estado Novo, levou à revalorização da herança literária mais antiga, que habitualmente se apresentava misturando trovadores medievais com autores quatrocentistas recolhidos no Cancioneiro de Resende e até com a obra lírica de Camões. Este interesse levou vários compositores (Tomás Borba, Ruy Coelho, Frederico de Freitas, Cláudio Carneyro, Croner de Vasconcelos, Filipe Pires, Victor Macedo Pinto…) a propor novas versões musicais de textos Galego-Portugueses medievais, fosse como forma de divulgação, como tentativa de criar uma tradição nacional de “lied”, ou como exercício de diferenciação sonora de um património.
A partir da década de 1950, o declínio da motivação nacionalista em Portugal deixou o campo livre para a afirmação, em diálogo com os autores medievais, de poéticas sonoras individuais (Lopes-Graça, ou, mais recentemente, Eurico Carrapatoso, entre outros), enquanto as edições de Rodrigues Lapa e as modernizações textuais de Natália Correia abriam espaço para a composição de versões em idiomas musicais mais populares (como as protagonizadas por Amália, Zeca Afonso e José Mário Branco). Entretanto, o desenvolvimento da musicologia aplicada às fontes mais antigas e a gradual emergência de um movimento de interpretação de música medieval com instrumentos antigos fizeram surgir, quer propostas de reconstrução musical de cantigas profanas a partir da reutilização de melodias medievais de outra proveniência (contrafacta), quer múltiplas gravações tentando recriar um ambiente sonoro trovadoresco, a partir das melodias originais, de contrafacta ou de recriações “ao estilo medieval”. A par destes desenvolvimentos, o moderno nacionalismo galego apropriou-se, por sua vez, da tradição lírica do século XIII, produzindo a partir dela múltiplas expressões musicais, de caráter mais historicista, mais erudito, ou mais popular (Amancio Prada, Uxía, Xurxo Romani). Este complexo panorama está a partir de agora refletido na riqueza e variedade dos conteúdos musicais que aqui acolhemos e divulgamos, e que estão abertos a novas atualizações.
7. Terminologia da poética trovadoresca
De forma a facilitar a utilização desta BD pelos não especialistas, em seguida se apresentam as definições muito sumárias dos principais termos da terminologia poética trovadoresca nela usados, nomeadamente no campo “Descrição”, inserido na coluna da direita da página de todas as cantigas.
Cantiga de amor – cantiga em voz masculina, na definição mínima, que é a da Arte de Trovar.
Cantiga de amigo – cantiga em voz feminina, na definição mínima, que é a da Arte de Trovar.
Cantiga de amor dialogada – cantiga em forma de diálogo entre a voz masculina e feminina, mas iniciado pela voz masculina.
Cantiga de amigo dialogada – cantiga em forma de diálogo entre a voz feminina e masculina, mas iniciado pela voz feminina, ou em forma de diálogo entre duas vozes femininas.
Cantiga de escárnio e maldizer – cantiga de “dizer mal” ou satírica. A Arte de Trovar distingue duas modalidades: o “dizer mal” de forma coberta ou equívoca (escárnio) e o “dizer mal” de forma aberta e ostensiva (maldizer). Uma vez que a distinção, no que respeita aos textos concretos, nem sempre é simples, e uma vez também que os próprios trovadores utilizam várias vezes a expressão genérica “escárnio e maldizer”, é esta a designação que utilizamos nesta BD.
Cantiga de loor – cantiga de louvor a alguém.
Cantiga de seguir – cantiga que “segue” (toma como base) uma cantiga anterior. A Arte de Trovar distingue três modalidades de seguir: 1) mantendo apenas a música da cantiga primitiva, à qual se adaptam novos versos; 2) mantendo a música e também as rimas da cantiga primitiva; 3) mantendo a música, algumas das rimas e ainda alguns versos ou mesmo o refrão da cantiga primitiva, mas dando a estes versos ou ao refrão, pelo novo enquadramento, um outro sentido.
Escárnio de amigo – cantiga satírica em voz feminina.
Espúria – cantiga ou poema datando de época posterior à Lírica Galego-Portuguesa, da qual já não faz parte, mas que foi inserida, no período compreendido entre finais do século XIV e inícios do século XVI, em espaços deixados em branco nos manuscritos medievais. Tendo sido esses manuscritos copiados em Itália nas primeiras décadas do século XVI, essas cantigas foram igualmente copiadas (motivo pelo qual a letra com que surgem nos apógrafos italianos é a mesma das cantigas medievais que a rodeiam).
Gesta de maldizer – cantiga de maldizer em forma de gesta, ou seja, parodiando o género épico medieval (a narração dos feitos de um herói).
Lai – na Lírica Galego-Portuguesa, composição de matéria de Bretanha, de autor desconhecido, mas atribuída a uma ou várias personagens lendárias dos romances do ciclo bretão-arturiano.
Pastorela – cantiga lírico-narrativa, geralmente dialogada, que descreve um encontro entre um cavaleiro-trovador e uma pastora, num quadro campestre.
Pranto – cantiga elegíaca por ocasião da morte de alguém, que se homenageia.
Pranto de escárnio – cantiga satírica em forma de paródia ao pranto.
Sirventês moral – cantiga crítica de tema moral e genérico.
Tenção – cantiga em que intervêm dois trovadores, que discutem, em estrofes alternadas, um tema ou uma questão entre si. O primeiro a intervir é considerado, nos manuscritos, o autor da cantiga. O seu interlocutor tem de manter, na sua resposta, o esquema formal proposto na 1ª estrofe (métrico, rimático, etc.); a cada interveniente cabe o mesmo número de estrofes (ou ainda de findas, se a composição as tiver).
Cantiga de refrão – cantiga com estribilho.
Cantiga de refrão paralelística – cantiga cujo princípio estruturante é a repetição de versos numa sequência determinada (com refrão invariável). No paralelismo perfeito, com leixa-pren (deixa-toma), as estrofes são constituídas por dísticos que se repetem uma vez com variações mínimas, sendo o último verso de cada par de estrofes retomado no par de estrofes seguinte (num esquema de versos cuja versão mais simples se poderá descrever da seguinte forma: a, b, a’, b’, b, c, b’, c’, c, d, c’, d’, etc.).
Cantiga de mestria – cantiga sem refrão.
Descordo – cantiga cujas estrofes não obedecem à norma da isometria.
Cobras – estrofes ou coplas.
Finda – remate de uma cantiga, constituído por um, dois ou três versos finais (em casos raros, quatro). As cantigas podem ainda ter duas ou mais findas.
Cobras singulares – estrofes com séries de rimas diferentes (embora com o mesmo esquema rimático).
Cobras uníssonas – estrofes com uma única série de rimas, que se repetem em todas as estrofes (ou seja, além do esquema rimático, as terminações vocálicas dos versos são as mesmas em todas as estrofes).
Cobras doblas – estrofes com séries de rimas que se repetem a cada duas estrofes.
Ateúda – cantiga que não sofre interrupção sintática entre as estrofes, e onde o sentido se liga do primeiro ao último verso.
Ateúda atá finda – cantiga ateúda até à finda (ou seja, onde o processo de ligação estrófica se estende à finda).
Dobre – processo pelo qual se repetem palavras na mesma estrofe, em pontos que são fixos em todas as estrofes (ou seja, exemplificando: se na 1ª estrofe se repete a mesma palavra em dois pontos, nas estrofes seguintes deverá repetir-se uma outra palavra na mesma posição).
Mozdobre – processo semelhante ao dobre, mas com variação na flexão da palavra (exemplo: amar/amei).
Palavra perduda – verso de uma estrofe que não rima com nenhum outro (mas podendo ou não rimar com os versos correspondentes das estrofes seguintes).
Palavra-rima: palavra repetida em rima no mesmo verso de todas as estrofes.