Ensinar melhor não é trabalhar somente o que cai na prova
As avaliações em larga escala chegaram ao Brasil no início da década de 1990 com a missão de verificar se o direito de crianças e jovens a aprender estava sendo efetivado. As provas continuam sendo aprimoradas e, hoje, fazem parte da realidade do país. Ainda que não sejam o único indicador de qualidade existente, são um valioso instrumento de controle social, que contribui para colocar o aprendizado no foco do debate, além de trazer informações para nortear as políticas públicas. Todos esses benefícios, no entanto, caem por terra quando a função diagnóstica dos exames é extrapolada e o planejamento e as estratégias pedagógicas das escolas se voltam apenas para preparar os alunos para realizá-los.
Em diferentes regiões do país, veículos de imprensa e pesquisadores têm denunciado práticas pouco louváveis adotadas por escolas e redes de ensino para sair bem na fotografia dos rankings. Entre as mais noticiadas estão: induzir os alunos com dificuldades de aprendizagem a faltar na prova, reprová-los para que não cheguem ao 5º ou ao 9º ano em época de aplicação das avaliações ou forçá-los a mudar de escola. As estratégias estão detalhadas no estudo Processos Velados de Seleção e Evitação de Alunos em Escolas Públicas, do Centro de Estudos e Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).
Pouco se fala, no entanto, de uma mudança estrutural preocupante, que vem ocorrendo em diferentes Secretarias de Educação: a redução dos currículos. Na tentativa de melhorar os resultados dos alunos nas avaliações externas, as redes privilegiam, nas grades curriculares e nos programas de formação docente, o ensino de Língua Portuguesa e de Matemática – e mais especificamente dos conteúdos cobrados nas provas -, em detrimento de outras disciplinas.
Sem um currículo nacional, a avaliação acaba sendo usada como base para determinar o que é trabalhado em sala de aula. “Usar as matrizes definidas externamente para essa finalidade restringe o currículo a um subconjunto daquilo que as escolas deveriam ensinar”, alerta a pesquisa A Avaliação Externa como Instrumento da Gestão Educacional nos Estados, realizada em 2010 pela Fundação Victor Civita (FVC), sob a coordenação do inglês Nigel Brooke, professor convidado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Na mesma linha, a norte-americana Diane Ravitch, especialista na área há mais de 40 anos e ex-defensora das políticas de avaliação, mostra no livro Vida e Morte do Grande Sistema Escolar Americano (318 págs., Ed. Sulina, tel. 51/3311-4082, 50 reais) que grandes cidades dos Estados Unidos transformaram suas referências curriculares em orientações voltadas apenas à preparação dos alunos para os exames.
Soluções como essas deixam de lado o principal objetivo da escola: a aprendizagem. A pesquisa Gestão Educacional e Resultados no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb): Um Estudo de Caso em Dez Municípios Cearenses, reali zada entre 2008 e 2011 pelas pesquisadoras Sofia Lerche e Eloisa Maia Vidal, mostra que os bons resultados alcançados por alguns municípios do Ceará são explicados, em parte, pela redução dos currículos e pela supervalorização das matrizes de referência da Prova Brasil. Em vez de ensinar todos os conteúdos, eles restringiram o trabalho aos itens cobrados no exame nacional.
Outro exemplo é a retirada de Ciências, História e Geografia da grade horária dos três primeiros anos do Ensino Fundamental da rede estadual paulista, ocorrida a partir de 2008 (veja a tabela abaixo). Questionada sobre a ausência das disciplinas, a Secretaria afirma que os conteúdos continuam sendo ensinados de forma transversal, dentro das aulas de Língua Portuguesa e Matemática, e que a rede conta com assessores especialistas em todas as áreas.
Sob o guarda-chuva da transversalidade, corre-se o risco de só se abordar as três áreas por meio de questões matemáticas e ou de atividades de leitura e escrita, deixando de lado procedimentos específicos. Observação, investigação, experimentação, registro e elaboração de hipóteses, por exemplo, são fundamentais no ensino de Ciências, e vão muito além de ler textos sobre um tema da área. O mesmo ocorre com as ciências humanas. Saber calcular uma escala não é suficiente para entender cartografia. A aprendizagem pressupõe, entre outras coisas, ler imagens e analisar informações em mapas.
Tirar disciplinas dos primeiros anos de escolarização é seguir na contramão do que dizem os estudos mais recentes sobre o processo de desenvolvimento cognitivo. Perde-se, assim, um precioso momento em que as crianças são curiosas e abertas para compreender o funcionamento do mundo em que vivem. Além disso, nada garante que mais aulas de Língua Portuguesa e Matemática vão resultar em mais aprendizagem. Isso só acontece quando os professores sabem ensinar. E, para tanto, são necessários programas sérios e estruturados de formação continuada em todas as áreas. É preciso ainda envolver os atores do processo educacional em projetos de longo prazo, que não terminem quando muda o governo.
Reduzir o currículo é voltar à década de 1960, quando as ciências naturais e humanas ainda não eram trabalhadas nos primeiros anos do Ensino Fundamental. A realidade só mudou com a Lei Nº 5.692, de 1971, que tornou obrigatório o ensino de Ciências, História e Geografia em todo o então chamado Primeiro Grau.
A questão de fundo nesse debate é qual Educação o país deseja garantir ao seu povo. Se a intenção é ter boas estatísticas, basta treinar os alunos para obterem bons desempenhos em exames padronizados. Mas se o objetivo é formar cientistas nas mais diversas áreas, produzir conhecimento de ponta, formar pessoas críticas, capazes de refletir e de tomar decisões sobre a própria vida e o mundo ao seu redor, o caminho é uma formação mais ampla. O aumento das notas nas provas, assim como o do Ideb, não é sinônimo de um ensino de qualidade e deve ser visto como consequência, e não como foco de ações. Afinal, o exercício pleno da cidadania pressupõe ir além e conhecer a língua, a Matemática, a Filosofia, as artes e as ciências humanas e naturais.