Leitura feita pelo aluno, antes de saber ler convencionalmente |
É preciso oferecer textos à criança já nas primeiras atividades de alfabetização porque conhecer seus usos e suas funções favorece a reflexão sobre o sistema de escrita
A criança compreende o sistema alfabético na prática de leitura, uma das quatro situações didáticas básicas para a alfabetização. O longo processo de conhecimento da linguagem escrita tem início antes de ela frequentar a escola. Segundo Ana Teberosky, professora da Universidade de Barcelona, na Espanha, a escrita ultrapassa os limites da sala de aula. Está presente em todas as etapas da vida e atinge o ser humano desde que surge o interesse pela representação gráfica.
A criança não tarda em reconhecer e distinguir palavras de figuras ao abrir um gibi ou um livro. Diferentemente dos desenhos, que comunicam referentes com facilidade, o sentido da escrita alfabética é adquirido com o tempo: as palavras se dispõem quase sempre em linha reta e descontínua e possuem uma quantidade de letras, que se alternam e se combinam para formar um significante.
O segredo para ensinar a ler é dar condições para o aluno resolver problemas que lhe permitam avançar como leitor e escritor, confrontando-se com textos desde o início da alfabetização.
Leitura pelo aluno de textos memorizados
Leitura feita pelo aluno, antes de saber ler convencionalmente |
Neste trabalho, o professor:
– Propõe a reflexão sobre o sistema alfabético de escrita.
– Proporciona situações reais de leitura com cantigas e parlendas.
– Permite que os alunos estabeleçam uma relação entre o oral e o escrito.
Segundo Beatriz Gouveia, coordenadora do programa Além das Letras, do Instituto Avisa Lá, em São Paulo, é o contato com o texto que permite ao aluno refletir sobre o funcionamento do sistema de escrita. “A reflexão constante possibilita desenvolver estratégias de leitura”, explica a educadora.
Tais estratégias são postas em prática pelas crianças sempre que tentam “ler” mesmo sem saber ler. “Elas antecipam o que pode estar escrito. Como ainda não dominam o sistema, estão o tempo todo usando informações sobre a escrita do próprio nome, do nome dos colegas ou outros que trazem da própria experiência.” Beatriz esclarece que essa tentativa de leitura não é aleatória. Ao contrário, “é um trabalho intelectual. A criança compara as palavras, seleciona, olha para todas as pistas e só então verifica o que está escrito”.
Existem atividades que ensinam o aluno a ler ao mesmo tempo em que proporcionam situações reais de leitura. Um exemplo é uma coletânea de cantigas e parlendas que as crianças já conheçam de cor. A letra da música é afixada pela professora na parede da sala de aula de maneira que todos possam acompanhar a leitura enquanto cantam. Assim – sempre com a intervenção da professora -, constroem relações entre o que pronunciam e a escrita correspondente.
A professora Ana Rosa Piovesana conseguiu alfabetizar todos os alunos no 1º ano da EMEB Rosa Scavone, em Itatiba, a 89 quilômetros de São Paulo, lançando mão de atividades de leitura e escrita de cantigas e parlendas, entre outras. No início de 2008, sua sala tinha oito crianças pré-silábicas, duas silábicas sem valor sonoro convencional, oito silábicas com valor sonoro convencional, uma silábica-alfabética e duas alfabéticas.
Antes de tudo, Ana Rosa pergunta quais cantigas todos conhecem. Esse levantamento é importante para saber que canções fazem parte do repertório comum da classe. Como as crianças ainda não dominam o sistema de escrita, a memorização prévia da canção que será “lida” é essencial para saber O QUE está escrito e tentar ler ONDE está escrito: se trabalha a música O Sapo Não Lava o Pé, por exemplo, o estudante saberá que as estrofes que tentará ler durante a atividade correspondem tão-somente à letra dessa música.
“Escrevo a letra das cantigas num papel pardo e coloco na parede da sala. Também entrego uma cópia para cada um colar no caderno para levar para casa e ler com os pais”, diz Ana Rosa. “Então cantamos a música, acompanhando a letra, apontando e fazendo o ajuste do falado ao escrito conforme ela vai sendo cantada. Depois, peço que encontrem palavras da música.”
Ana Rosa descreve as intervenções realizadas com um de seus alunos durante o trabalho com uma das cantigas. Os versos em questão eram: “Havia uma barata/ Na careca do vovô/ Assim que ela me viu/ Bateu asas e voou”. Ana perguntou:
– Lucas, encontre para mim na cantiga a palavra “vovô”.
Ele apontou a palavra “voou”.
– Lucas, diga com que letra começa a palavra “vovô”?
– Com “v”, de Vanessa.
– Muito bem, mas…
– Mas esta também começa com “v” – disse Lucas, se antecipando à docente e apontando para a palavra “vovô”.
– Então, com que letra termina a palavra “vovô”?
A intervenção nesse caso levou o garoto a analisar mais que a primeira letra da palavra para conseguir lê-la e encontrá-la. “Lucas observou que ‘voou’ não tinha a letra ‘o’ no fim, percebeu que aquela não era a palavra correta e recorreu novamente à música para encontrar o que havia sido pedido”, explica Ana Rosa.
Neste trabalho, o professor:
– Propõe a reflexão sobre o sistema alfabético de escrita.
– Aciona estratégias de leitura que permitam descobrir O QUE está escrito e ONDE está escrito (seleção, antecipação e verificação).
O objetivo da leitura de títulos de livros é oferecer ao aluno o desafio de encontrar, entre muitas histórias, uma que gostaria de escutar em casa pela voz dos pais. Esse é o motivo pelo qual ele é levado a procurar em uma lista o título de sua história preferida. Isso é feito com base nos conhecimentos sobre a escrita de que já dispõe e naqueles que adquire com o passar do tempo – a escrita do próprio nome, do nome de colegas etc.
Na EMEF Laura Lopes, em São Caetano do Sul, na Grande São Paulo, Tatiana Garcez Jora começa essa atividade colocando os estudantes em círculo para que comentem o livro que leram com a família. A professora permite que eles citem os trechos da história que mais chamaram a atenção. A intenção é fazer com que apresentem as obras uns aos outros, despertando o interesse coletivo.
Tatiana prepara pequenas tarjetas de cartolina. Em cada uma, vai escrito o título de um dos muitos livros que podem ser encontrados numa caixa que fica na sala de aula. Então um aluno se sente atraído por Branca de Neve. A professora seleciona três tarjetas, A Bela Adormecida, Branca de Neve e A Bela e a Fera, lê os títulos numa ordem e os apresenta à criança em outra. O fato de que os três títulos terem palavras começadas com “b” impõe a necessidade de encontrar na extensão da palavra mais indicativos – tamanho, outras letras etc.
A professora fica ao lado do aluno durante as tentativas de leitura, fazendo intervenções que promovam a reflexão sobre o sistema de escrita, seja para levá-lo a repensar uma escolha, seja para pedir justificativas se ele aponta corretamente o título. Uma vez que o encontra, o estudante coloca o título num caderno para registrar o empréstimo e vai à caixa de livros, onde estará envolvido em outra atividade de busca, com o auxílio das imagens nas capas.
Utilizar essas tarjetas que apresentam apenas o título das histórias, em vez de exibir as imagens na capa dos livros, permite o foco exclusivamente no contexto escrito – objetivo da alfabetização.
Leitura pelo aluno de textos informativos
Leitura feita pelo aluno, antes de saber ler convencionalmente |
Neste trabalho, o professor:
– Expõe o procedimento que os leitores experientes usam para buscar informações.
– Formula questões sobre o que será lido e procura no texto como respondê-las.
Em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, a professora Lóide Carvalho de Vasconcelos iniciou com a turma de 1º ano da EMEB Anísio Teixeira o projeto Conhecendo os Animais.
“Primeiro, perguntei a todos quais animais queriam conhecer melhor. Eles chegaram a um consenso e decidiram se aprofundar na vida da girafa”, explica Lóide. “Então levantamos questões sobre o que a girafa come, onde mora, quantos anos vive etc.” Para confirmar as respostas que os alunos deram às perguntas, a solução foi encaminhá-los à biblioteca.
Na rede municipal de São Bernardo, a pesquisa não apresenta as dificuldades tradicionais que uma criança encontraria numa biblioteca comum. As obras estão dispostas por temas e divididos por cores. Os livros se organizam em ordem alfabética pelo sobrenome do autor e ficam com a capa à mostra para que o aluno que está aprendendo a ler possa utilizar as imagens como um instrumento adicional de busca. As estantes são baixas para que a criança alcance as obras.
Lóide diz que os estudantes são orientados sobre como usar a biblioteca antes de sair à procura de informação. “Eles foram atrás de dicionários e enciclopédias em que pudessem constar informações sobre as girafas, além de livros e revistas”.
As obras são selecionadas. O papel da professora é investigar junto com a turma se os livros trazidos podem ou não servir para aprimorar o conhecimento sobre o tema. “Se um aluno trazia um livro porque tinha visto uma figura de mamíferos, por exemplo, eu lia o sumário com ele para saber se ali há elementos sobre a girafa”, relata Lóide. “Esse procedimento ensina a buscar informações de maneira cada vez mais autônoma e a compreender que só o desenho não esclarece tudo: é preciso ler.”
Alunos e professora escolheram quatro livros. Lóide formou uma roda e leu os textos para responder às dúvidas sobre a girafa. Depois, cada um escolheu um animal para pesquisar individualmente, seguindo os mesmos procedimentos. “Mesmo que as crianças não saibam ler de forma convencional, quando há um contexto gerador de informações, elas conseguem realizar a leitura e, assim, aprendem a ler”, conclui a professora.
Escrito por: Tadeu Breda – Fonte: NOVAESCOLA