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Como trabalhar contos de artimanha

Como trabalhar contos de artimanha 
Contos de artimanha: narrativas, geralmente curtas, nas quais os personagens – humanos ou animais – utilizam-se de ardis (armadilhas ou disfarces), truques, malandragens, gambiarras e espertezas para garantir sua sobrevivência ou mesmo a vitória contra forças maiores que a sua.
Em tais contos – de artimanha; ou de manhas e artimanhas; ou de astúcia, ou ainda, de esperteza, como costumam ser denominados – a trama é sempre organizada em torno de um personagem que utiliza a esperteza para obter o que deseja, ludibriando outro – ou outros – personagem ingênuo ou, pelo menos, não tão esperto como o protagonista. Dessa maneira, os ardis são sempre inesperados e engenhosos, nunca havendo uso de estratégias usuais e previsíveis.
Estes protagonistas – que podem ser pessoas ou animais – acabam por representar a possibilidade de ludibriar certos valores da sociedade que os segrega ou exclui, valores estes sintetizados na figura de seu antagonista. Assim, podem ser personagens que sofrem pela pobreza, o que lhes acarreta ausência de dinheiro, de comida e bens materiais; podem sofrer por problemas que se realizam no interior da família (ou de um casal, como a traição) que desafiam astuciosamente os valores morais vigentes; podem, ainda, ser alvo do autoritarismo de representantes de classes sociais hierarquicamente superiores.
(…) Os contos de artimanha são comumente organizados no eixo temporal, quer dizer, as ações narradas são apresentadas em uma ordem e sequência de tempo claramente indicadas. O tempo da narrativa costuma ser indefinido, mas o local pode ser especificado em alguns textos, já que se referem à tradição oral e, dessa forma, a sua origem histórica pode remeter a uma região específica[2]. As relações de causalidade marcam a progressão temática no que se refere à relação  existente entre os motivos do protagonista, a estratégia que desenvolve para resolver o problema colocado a ele e às consequências/resultados do plano executado.
Nestes contos não há a presença do elemento mágico típico dos contos de fadas e de encantamento: a astúcia do protagonista o substitui. Tampouco há príncipes, reis e princesas: sendo assim, quando acontece a resolução do problema por meio do casamento, este acontece com a filha do patrão, por exemplo.
Do ponto de vista especificamente textual, a artimanha do protagonista costuma ser apresentada ao leitor – e comumente também aos seus antagonistas – no momento em que está sendo desenvolvida na história, e não de maneira antecipada. Quer dizer: em tais textos, não é usual que haja antecipação do plano do personagem esperto ao leitor; ao contrário, este toma conhecimento do plano na medida em que está sendo posto em ação, o que coloca suspense no texto, quase sempre surpreendendo, ao final, tanto personagens quanto leitores.
IMPORTANTE SABER
·      Nos contos de artimanha a trama é conduzida sob a ótica de um herói malandro que troça de ricos, poderosos, de instituições, mas também de indivíduos comuns cujo comportamento destoa de um padrão convencional.
Na trama, o protagonista costuma agir: a) para melhorar a sua situação ou a situação de um aliado, procurando obter recompensa, ou então explorando uma situação que possa lhe render algum benefício material; b) para proteger-se de uma ameaça ou agressão, vinda de alguém que o subestima, e/ou explora ou a um aliado; c) punir um oponente, vingando-se dele.
Como ficam esses aspectos quando se trata de contos que envolvem apenas animais?
Nesse caso, a esperteza e a astúcia são as únicas armas de que o animal de porte pequeno dispõe – com possibilidade de vitória – para enfrentar o inimigo mais forte. O antagonista é representado, portanto, por aquele que é superior ao esperto em relação à força física e tamanho. Isso se justifica considerando que na lógica da natureza, sobrevive quem é mais forte. O conto de esperteza mostra a possibilidade de subverter essa lógica por meio da esperteza
·      Na fábula, os animais representam as virtudes e defeitos humanos, segundo a visão do homem. Este é o critério de seleção dos mesmos para a composição da trama. Por exemplo: a raposa costuma representar a astúcia; o coelho, a rapidez, agilidade; o macaco, traquinagem e esperteza; a cegonha, a pureza, maternidade, bondade.
A finalidade da fábula é mostrar ao homem a sua condição e regras morais que deveria respeitar. Assim sendo, a característica de cada animal é apenas servir ao propósito de ensinar ao homem por meio de uma comparação.
As relações estabelecidas entre os animais das fábulas são, portanto, diferentes daquela estabelecida no conto de artimanha: nestes, o que vale é a possibilidade de subverter uma relação de predador-presa; uma ideia de que o maior e mais forte fisicamente sobrevive pela seleção natural. Nas fábulas isso não se coloca.
Conhecendo  um conto e seu personagem principal
Pedro Malasartes e o Lamaçal Colossal
Objetivo:
·      Conhecer um conto de artimanha e familiarizar-se com algumas das características desse tipo de conto.
Encaminhamentos:
Leitura de um conto de artimanha pela professora
Avise aos alunos que você lerá um conto de artimanha, chamado “Pedro Malasartes e o Lamaçal Colossal”, do livro “Histórias à Brasileira”. Antes da leitura, pergunte à classe:
·      Vocês já ouviram falar em contos de artimanha?
·      Que tipo de conto pode ser esse?
·      Será que a palavra artimanha pode ajudar a entender do que se trata?
Discuta as respostas, procurando referenciar-se, sobretudo, na palavra artimanha, discutindo seu significado, comparando com sinônimos, por exemplo.
Leia o texto todo. Após a leitura proponha uma discussão sobre o texto lido, fazendo perguntas como:
·      Vocês já conheciam histórias parecidas com essa?
·      Já tinham ouvido falar do Pedro Malasartes?
·      Por que será que esse conto pode ser chamado de conto de artimanha?
AMPLIANDO INFORMAÇÕES
Pedro Malasartes
De acordo com o pesquisador da cultura nacional Luís Câmara Cascudo, “Pedro Malasartes [ou Malazartes] é figura tradicional nos contos populares da Península Ibérica, como exemplo de burlão invencível, astucioso, cínico, inesgotável de expedientes e de enganos, sem escrúpulos e sem remorsos.”
A menção mais antiga feita ao personagem é na cantiga 1132 do Cancioneiro da Vaticana, datado do século XIII e XIV:
“chegou Payo de Maas Artes com seu cerame de chartes… semelha-me busuardo viindo en ceramen pardo… log’ouve manto e tabardo”.
Há informações de que até mesmo o grande romancista, dramaturgo e poeta espanhol Miguel de Cervantes Saavedra, escreveu sobre este ícone em sua comédia PEDRO DE URDEMALAS, que compõe o livro Ocho comedias y ocho entremeses nuevos (1615).
Outras versões deste personagem surgem em várias regiões da Europa, como Pedro Urdemales em Castela, Till Eulenspiegel na Alemanha e Pedro de Urdes Lamas na Andaluzia.
Duas óperas brasileiras tem o personagem por protagonista: Malazarte de Oscar Lorenzo Fernández e Graça Aranha, e Pedro Malazarte, de Mozart Camargo Guarnieri e Mário de Andrade.
Na literatura, vários autores usaram o personagem e nos cinemas o ele tomou corpo com As Aventuras de Pedro Malasartes, de 1960, com Mazzaropi no papel principal.”
Fontes: http://www.ebc.com.br; Cancioneiro da Vaticana, Biblioteca Digital do Alentejo, p. 281;
 http://www.jangadabrasil.com.br.
Leitura Compartilhada e Análise do Conto de Artimanha “A Velhinha Inteligente”
Objetivo
·      Ampliar – e aprofundar – conhecimentos sobre a linguagem e os recursos discursivos presentes nos textos apresentados para leitura.
Encaminhamentos
Estudo do conto junto à classe.
Retome o conto do Pedro Malazarte, lido na aula  anterior, e faça uma nova leitura com a classe, com o objetivo de que todos recuperem a história.
Entregue o texto A Velhinha Inteligente para os alunos. Leia-o enquanto eles acompanham. No final, comece, então, o estudo do texto a partir de questões orientadoras. A intenção, nesse momento, é aprofundar a compreensão dos alunos e, ao mesmo tempo, estudar os recursos discursivos e linguísticos nele apresentados.
Entregue o texto para os alunos.
Para o estudo do conto “A Velhinha Inteligente”, sugerimos as seguintes questões:
Essa é uma história criada por um autor ou que vem sendo contada de boca em boca, ao longo do tempo. 
1)      Como é possível saber isso?
2)      Onde encontramos pistas no texto a esse respeito?
Comentários:
Na discussão com os alunos, oriente para que procurem no texto o trecho que contém pistas sobre a resposta. Nesse caso, o primeiro parágrafo já indica que a história é antiga, conhecida de todos, e que vem se modificando ao longo do tempo.
É importante remeter o aluno à fonte – caso eles não recorram a ela espontaneamente – para problematizar dois aspectos:
·      o primeiro refere-se à presença da autoria que, nesse caso, relaciona-se com a reescrita, a elaboração de uma nova versão da história pelo escritor indicado;
·      o segundo aspecto refere-se ao título da obra – Novas Histórias Antigas – que ratifica a ideia de que são histórias que já existem há muito tempo e que estão sendo recontadas pela autora.
3)      Em qual trecho inicial o leitor já tem uma pista de que pode se tratar de um conto de artimanha?
Comentários:
Pretende-se que os alunos recuperem uma das características fundamentais do conto de artimanha, que é a presença de um protagonista esperto, engenhoso.
Logo no primeiro parágrafo há uma pista a respeito, quando se diz que “a cidade foi salva graças à esperteza de uma mulher”.
4)      É possível saber no início do conto qual era o plano da madame Carcas para salvar a cidade dos guerreiros inimigos?
Comentários:
Esta pergunta remete à uma estratégia discursiva e textual dos contos de artimanha que é a de não apresentar previamente o “plano” do protagonista para o leitor e demais personagens da história. Nestes contos, o estratagema do protagonista vai sendo conhecido na medida em que vai sendo desenvolvido. Isto provoca um suspense durante a narrativa e um final inusitado, não esperado, que surpreende a todos, resultado do ardil, da esperteza e da inteligência do protagonista.
Nesse sentido, espera-se que os alunos percebam que – no texto – o plano não é anunciado e depois executado; ao contrário, ele só vai sendo conhecido quando posto em prática, aos poucos. A madame Carcas não conta à população da cidade o que vai fazer. Apenas vai dando ordens a todos, para providenciarem isso e aquilo. Só ao final é que se pode ter uma ideia de tudo o que ela engendrou para conseguir vencer o inimigo.
Para responder a esta questão, os alunos precisarão ir identificando o modo pelo qual ficam sabendo – ao ler o texto – do plano da senhora Carcas. Isso remete à localização de informações em diferentes trechos do texto, e à articulação de todos eles para a totalização do plano, em si. Os diferentes trechos seriam relativos aos pedidos que a madame vai fazendo à população, os quais são fundamentados no conhecimento que ela tem dos moradores da cidade – já que ela é uma velhinha, ou seja, antiga moradora e, dessa forma, conhecedora da população – e, além disso, no seu intento: enganar os inimigos, conhecendo também seu ponto fraco.
Para responder a questão é preciso, antes de qualquer coisa, identificar o plano, o que remete à articulação das informações dos trechos e elaboração da ideia totalizadora do plano. Dito em outras palavras, só se compreende qual é o plano no final do texto, e não antes, depois de todas as etapas executadas.
Sintetizando: o plano da Madame Carcas era induzir o inimigo a ir embora, fazendo-o acreditar que a cidade tinha condições de resistir muito tempo, mais do que eles, pois tinham alimentação suficiente para continuar resistindo ao cerco. Como ela faz isso? Mostrando aos soldados que tinham muitas provisões, o que é conseguido com a “fuga” da vaca. Na verdade, Madame Carcas antecipa a reação dos soldados, que estavam morrendo de fome: se a cidade deixasse “escapar” a vaca, bem alimentada, certamente os soldados a matariam para comer. Ao fazerem isso, veriam como estava bem alimentada. Concluiriam que a população tinha muitas provisões e, dessa forma, poderiam resistir ao cerco por muito mais tempo que eles.
d) Por que todos acham um absurdo os pedidos que a Madame Carcas vai fazendo durante a história?
Comentários:
Para responder a essa questão os alunos precisarão analisar a reação dos moradores dentro da situação em que se encontravam: sitiados e com fome, por causa da escassez de alimentos. Os pedidos da Madame Carcas estavam levando a população a abrir mão dos últimos alimentos que tinham à disposição, o que – aparentemente – a colocava em desvantagem em relação ao inimigo.
Nessa questão é importante que sejam analisados cada pedido feito e de que modo se relacionam com o plano urdido pela protagonista. Além disso, é preciso levar em conta quem era ela: uma antiga moradora que, dessa forma, conhecia muito bem todo mundo. Esse fato, por exemplo, possibilitou que ela inferisse que o avarento da cidade tivesse escondido uma vaca na sua casa.
É importante articular a discussão dessa questão com o estudo feito na questão anterior.
e) Por que o plano de Madame Carcas dá certo?
Comentários:
Articule essa discussão com a das duas questões anteriores. Focalize que o plano dá certo por vários motivos:
1)      a velha senhora conhece as condições em que o inimigo está (com fome, também, e sem provisões);
2)      ela sabe que a saída é fazer com que os soldados desistam do cerco, pois a cidade não resistiria por muito tempo;
3)      Madame Carcas antecipa uma razão que poderia levar os soldados à desistência: imaginar que a cidade está mais forte;
4)      a velha senhora conhece muito bem a população, e sabe, inclusive que há um avarento que, provavelmente, estaria escondendo uma vaca na sua casa;
5)      Madame Carcas consegue antecipar a reação dos soldados e a conclusão a que chegaria o chefe deles.
f) Algumas palavras e expressões usadas no texto indicam que ela tinha muita certeza que seu plano daria
   certo. Quais são elas?
Comentários:
Nesta questão pretende-se que os alunos estejam atentos para os recursos linguísticos empregados no texto, as palavras selecionadas para indicar a certeza da senhora. Isso é fundamental no texto porque ratifica uma característica da protagonista: ser inteligente e saber muito bem o que estava fazendo.
g) De que forma o plano de Madame Carcas é revelado no texto?
Comentários:
A intenção, com essa pergunta, é deslizar da discussão do conteúdo semântico, em si, para a estratégia textual. Ou seja, é focalizar que o plano não foi apresentado para o leitor primeiro para, depois, fosse mostrado de que maneira foi desenvolvido e executado na cidade, junto à população.
Nesse momento, é possível que você apresente para os alunos uma alternativa de redação, caso a estratégia textual não seja observável para eles.
A alternativa poderia ser a seguinte: pegue o conto lido e, depois do 4º parágrafo, que termina com “não faria mal escutá-la”, introduzam o seguinte trecho:
“A velha senhora, então, revelou à população o que pretendia fazer:
Precisamos enganar os soldados fazendo com que eles pensem que podemos resistir mais do que eles. Vamos fazer com que pensem que temos provisões de sobra e que eles não aguentarão tanto tempo quanto nós. Meu plano, então, é o seguinte: pegamos uma vaca, damos de comer a ela com os alimentos que nos restam e deixamos que ela “escape” da cidade. Eles, famintos como estão, certamente vão tentar comer a vaca… Então, primeiro, tragam-me uma vaca – pediu ela.”
Leia o texto com essa nova redação e, se possível, permitam que os alunos vejam o texto enquanto é lido (para isso, prepare-o antes com o recurso que você tiver disponível na escola).
Leia um ou dois parágrafos seguintes e perguntem a eles que diferença faz escrever o texto dessa forma ou como no original. A ideia é que possam perceber que:
a) contar antes tira o suspense da história e, portanto, a surpresa final;
b) contar o plano antes não é tão interessante para o leitor quando se ele ficar sabendo só quando ele for executado;
c) não seria possível conseguir tanta indignação dos moradores se eles já soubessem do plano, o que também contribui para a quebra do suspense e não prenderia tanto a atenção do leitor.
Estudo de Texto Focalizando seus Recursos Discursivos e Linguísticos.
Sapo com medo d’água
Objetivos
·      Compreender um conto de artimanha lido a partir dos elementos constitutivos da sua organização interna (ardis e truques para enganar o oponente; identificação do protagonista e do antagonista; identificação do plano do protagonista; identificação dos motivos do protagonista para ludibriar o vilão).
·      Identificar, a partir da mediação do professor, recursos linguístico-discursivos empregados em dois contos de artimanha e os efeitos de sentido que provocam.
Encaminhamentos
Leitura das duas versões do conto “Sapo com medo d’água”.
Nessa etapa, sugerimos que sejam lidas as versões do conto “Sapo com medo d’água”, de Ricardo Azevedo e Câmara Cascudo. Leia os textos em dias distintos e converse com as crianças sobre as semelhanças e diferenças entre as duas histórias, focalizando não apenas aspectos semânticos, mas discursivos e textuais.
Faça uma primeira leitura de um dos contos e converse com o grupo fazendo perguntas que ajudem a verificar se as crianças compreenderam o texto.
Estas perguntas devem remeter-se às características fundamentais de um conto de artimanha, ou sejam, devem referir-se a:
a) quem é o protagonista –personagem esperto, que vai enganar o vilão – nessa história?;
b) como você sabe disso?;
c) quem é o antagonista, o vilão?;
d) como você sabe disso?;
e) qual o plano do protagonista?;
f) ele consegue enganar o vilão?;
g) por que você acha que o protagonista quis enganar o vilão?;
h) como você sabe disso?
Em seguida, releia o conto analisando, junto com os alunos, os recursos discursivos e textuais empregados no textos e os efeitos de sentido que provocam. Considerem os comentários e as orientações apresentadas a seguir.
Comentário:
Na primeira versão, os seguintes aspectos podem ser discutidos com os alunos:
a) O título do texto – “Sapo com medo d´água” – contraria tanto o possível repertório do aluno, quanto a lógica do conto de artimanha, no qual o protagonista é sempre esperto, inteligente, ardiloso: sapo não tem medo de água; o sapo não pode ser medroso, se é o protagonista. O título, enquanto recurso textual e discursivo que supõe redução de informação semântica do texto como um todo, costuma possibilitar ao leitor antecipar sentidos do texto. Nesse caso, pode, à primeira vista, apresentar uma contradição. No entanto, sabendo-se que sapo não tem medo de água, podemos considerar que o leitor já tem – a partir desse título – uma pista sobre quem será o esperto, quem estará enganando, qual a estratégia do protagonista. Nesse sentido, o título passa a ser um recurso provocativo; explicitador da estratégia do sapo.
b) A primeira frase – “O sapo é esperto.” – embora contrarie o título, confirma a esperteza do sapo; ao mesmo tempo ativa a capacidade do leitor para estabelecer a relação entre o que ele sabe sobre o sapo, a contradição em relação ao título e quem será o protagonista do conto, considerando as características de textos desse gênero. É possível, inclusive, inferir qual será a estratégia do sapo para enganar seu antagonista.
c) organização do diálogo, foi elaborada quase sem a presença de verbos ‘discendi’ (verbos de dizer: aqueles que especificam a fala a ser apresentada em cada turno: disse, falou, respondeu, retrucou, perguntou, indagou, murmurou, entre outros); e quase sem referências à origem – ‘autor’ – da fala de cada turno. Esse recurso provoca um efeito de agilidade nas falas e, dessa forma, rapidez à ação da trama, pelo menos até a fala “Vamos botar o sapo na lagoa!”.
Depois disso – quando o final se anuncia e a estratégia está para ser concretizada -, a diferença é visível: há, por duas vezes, o anúncio completo fala do sapo7 (‘Aí osapo ficou triste começou a pedir, com voz de choro:’ e O sapo mergulhou, veio em cima da água fritando satisfeito:’); há, ainda, o apresentação da fala dos meninos, após a primeira fala do sapo (‘Vamos para a lagoa – gritaram os meninos’). É importante tematizar junto aos alunos as pistas que o texto oferece para que identifiquemos quem está falando o que.
Algumas orientações:
·      na primeira fala, a referência ao sapo como objeto da ação do nós implícito em ‘vamos’ – os meninos – indica que não é ele quem fala; a 1ª pessoa do plural (referente aos meninos) indica quem fala;
·      na segunda fala, o verbo de dizer – ‘dizia’ – e a referência à fonte – o sapo – explicitam quem fala. Além disso, há a referência a “meu couro”, que é mais coerente com o personagem sapo, e a ideia de que não adiantaria jogá-lo nos espinhos – intenção dos meninos, apresentada na fala anterior;  
·      na terceira fala, o verbo na primeira pessoa do plural – ‘vamos’ – já indica quem fala; além disso, há uma referência a ele – o sapo -, o que indica que não pode ser o sapo quem fala;
·      na quarta fala, como há uma alternância, e também pelo conteúdo semântico da fala (pois fogo pode matar sapo e, se alguém está dizendo que não, só poderia ser o sapo para salvar-se, o que é coerente com sua estratégia para enganar os meninos), fica fácil deduzir quem fala;
·      quinta fala possui as mesmas características que a terceira;
·      sexta fala é semelhante à quarta: há uma alternância de turno, e também o conteúdo semântico da fala denuncia o seu autor (pois pedra pode matar sapo e, se alguém está dizendo que não, só poderia ser o sapo para salvar-se, o que é coerente com sua estratégia para enganar os meninos);
·      na sétima fala, o verbo na 1ª pessoa do plural, identifica os falantes;
·      na oitava, vale a justificativa apresentada para a 4ª fala;
·      na nona fala, vale o exposto para a sétima.
A diferença na redação das sequências dialogais do texto – quando colocadas em comparação – provocam o efeito de sentido que confere rapidez à primeira parte – ‘bate-volta’ ‘pingue-pongue’ -, e mais lentidão à segunda;
d) O efeito de lentidão conferido à segunda parte é bastante adequado às intenções semânticas: necessidade
    de o sapo demonstrar medo para convencer mesmo os meninos de que ele deveria ser jogado na água; isso
   coloca a necessidade textual de explicar, qualificar a ação para que se tenha uma ideia mais clara da  
   dramatização/encenação realizada pelo sapo, e com sucesso.
Na segunda versão do conto “Sapo com Medo d’água” – a versão de Ricardo Azevedo – encontramos uma progressão organizada de maneira diferente e uma estratégia do protagonista também diferente.
Nela, a estratégia do protagonista é manter-se tranquilo e calado enquanto os bandidos pensam em maneiras de fazer maldades ao animal que, de fato, poderiam prejudicá-lo. Quando os antagonistas tem a ideia de jogá-lo na lagoa é que ele se põe a falar, como se fosse a pior coisa que poderiam fazer com ele. A partir desse momento – com a fala Tudo menos isso” – é que o diálogo fica rápido, com verbos de dizer escasseando progressivamente, assim como a indicação do falante.
Depois da leitura dos dois textos, oriente um trabalho de comparação entre eles, focalizando os aspectos estudados em cada um.
As perguntas a seguir podem orientar uma conversa sobre os textos:
a) quem pega o sapo e por qual razão, em cada uma das versões?;
b) quais ameaças são feitas ao sapo e como ele reage, em cada uma das versões?;
c) qual o plano do sapo em cada um dos textos?;
d) quais são os desfechos?;
d) qual plano vocês acharam mais interessante? Por que?;
e) de qual texto vocês mais gostaram? Por que?.
Ao final do estudo comparativo, aproveite para conversar com seus alunos sobre o fato de que os contos de artimanha, assim como os contos de fadas, têm suas raízes na tradição oral, ou seja, são histórias muito antigas que foram transmitidas ao longo do tempo de geração a geração. Por isso, muitas delas têm diferentes versões, pois, cada pessoa, depois de ouvir a história, conta de seu jeito.
Anexo – textos
Pedro Malasartes e o Lamaçal Colossal
Você conhece o Pedro Malasartes? Se não conhece, pode ir se preparando porque ele pode aparecer aqui a qualquer hora.
Ele não esquenta lugar, está sempre indo de um canto para outro. Fica um tempinho trabalhando numa fazenda, sai e vai para outro emprego num sítio, daí a pouco já está numa vila vendendo umas coisas na feira… Quando a gente menos espera, Pedro já está de novo na estrada, a caminho da cidade ou de outra fazenda onde possa ter uma oportunidade melhor. Muda toda hora, sempre em busca de um trabalho mais bem pago, de um patrão que trate bem, de um negócio mais interessante. Por isso, em cada história ele está fazendo alguma coisa diferente. E sempre procurando dar um jeito de se defender, garantir um prato de comida e não ser explorado. Mesmo que, para isso, acabe enganando alguém.
Acho que uma das primeiras aventuras de Pedro Malasartes foi quando ele foi tomar conta dos porcos de uma fazenda muito grande, de um fazendeiro muito rico e muito sovina.
Quer dizer, no começo Malasartes não tomava conta dos porcos, não. Trabalhava na colheita. Aliás, bem nesse começo ele ainda nem se chamava Malasartes, era só mais um Pedro como tantos outros que ainda não tinha ficado conhecido por fazer arte nem por pregar pela nos outros. Chegou lá pedindo emprego e foi contratado para colher café.
Pedro trabalhou o mês inteiro. De manhãzinha até a noite. No fim desse tempo, quando chegou o dia do pagamento, o patrão deu a ele umas moedinhas.
Só isso, patrão? E o salário que a gente combinou?
Bom, eu tive que descontar sua hospedagem… Se eu for hospedar de graça todo mundo que chega nesta fazenda colossal…
E o senhor chama de hospedagem dormir amontoado com os outros naquele barracão, numa esteira velha, direto no chão duro? – reclamou ele.
Faz até bem para a coluna…
Pedro insistiu:
·           Mas foi uma hospedagem muito cara. Eu tenho pra mim que eu não dormi esse tantão, não…
Não adiantou insistir. O desconto estava feito. E o patrão ainda apareceu com outra explicação:
·           É que tem também o desconto da comida. Se eu for dar comida de graça para todo mundo que chega nesta fazenda colossal…
·           Um descontão desses? Pela comida? Só aquele feijãozinho talo todo dia? E o senhor queria que eu passasse fome? Trabalhasse sem comer? Saco vazio não fica em pé…
·           Claro que não quero ver você com fome! Mas comida custa dinheiro – respondeu o patrão.  Tenho que descontar do seu salário o preço do feijão com arroz, do sal, da linguiça, da lenha que cozinhou a comida, do óleo, do alho e da cebola que a cozinheira usou no refogado, do salário da cozinheira, do sabão que lavou as panelas, do…
·           Chega, patrão, chega! Não precisa mais falar tanto em desconto. Mas eu tenho pra mim que eu não comi esse tantão, não…
Não adiantou discutir. O desconto estava feito.
Pedro resolveu que no mês seguinte ia ser diferente. Trabalhou do mesmo jeito, de sol a sol, mas não dormiu no barracão nem comeu com os outros. Com o pouquinho de dinheiro que tinha ganho comprou na venda sua própria esteira e dormia embaixo de uma árvore. Pescava no ribeirão, armava arapuca na mata, e no fim do dia quase sempre tinha alguma coisa para assar numa fogueira ao ar livre. Arrumava uma frutinha aqui, outra ali, pegava uma espiga de milho verde num milharal, uma raiz de mandioca numa roça, umas folhas de taioba crescendo ao deus dará junto do córrego… Quase sempre dava um jeito de não comer com os outros. Dessa vez o patrão ia ver só. Não ia adiantar vir com aquela conversa de fazenda colossal.
Mas, na hora do pagamento, não foi muito diferente. O patrão descontou um tantinho pelo aluguel do pedacinho de terra onde ele armava a esteira, outro tantinho pelo uso do rio, e outro tantinho pela espiga de milho, pela raiz de mandioca, pelas folhas da taioba, por tudo o que ele tinha comido.
Chega, patrão, chega! Não precisa falar mais em tanto desconto. Mas eu tenho pra mim que eu não usei esse tantão, não… – reclamou Pedro.
·           Se é assim, vou-me embora. Não trabalho mais aqui.
O patrão coçou a cabeça, olhou pra ele e disse:
·           Só se for no mês que vem. Porque neste mês agora vai ter que trabalhar pra mim, para poder acertar nossas contas.
·           Nossa contas? Como assim? – estranhou Pedro.  
·           É que ainda falta acertar sua conta com o armazém.
·           Que armazém? – estranhou Pedro de novo.  
·           Uai, aquela vendinha na beira da estrada. Você não sabe que é minha?
·           E eu lá tenho conta em armazém?  
·           Como não tem? E a esteira que você comprou?  
·           Comprei e paguei, com muita honra! – exclamou Pedro furioso.
·           Pagou a esteira, mas também comprou também um pedaço de fumo de rolo e uma cachacinha… Ou não lembra que comprou?
·           Comprei e também paguei, com muita honra! – exclamou Pedro, furioso!
·           Pagou a primeira… – concordou o patrão.  Mas depois pediu outra, e mais outra, e não tinha mais dinheiro para pagar. Mandou botar na conta. O vendedor anotou tudo. E agora você tem que pagar. Se eu fosse deixar de graça tudo o que todo mundo compra nessa fazenda colossal…
Pedro protestou:
·           Eu tenho pra mim que eu não bebi e não fumei esse tantão, não…
Com ar de bonzinho, o fazendeiro completou:
Mas pode deixar para pagar uma parte no mês que vem.
Pedro saiu dali muito zangado. Mão lembrava de ter bebido muitas doses de pinga. Mas até podia ser. Bem que a mãe dele dizia que isso de tomar uma cachacinha é desgraceira.
De qualquer modo, uma coisa ele estava entendendo: aquilo não ia ter fim nunca.
·           Esse fazendeiro é um explorador! Vem com essa conversinha mole de fazenda colossal, mas está querendo me tratar feito se eu fosse um escravo. Não me paga e não em deixa ir embora. Ah, mas isso não vai ficar assim. Vou dar um jeito.
No dia seguinte, procurou o patrão e se ofereceu para tomar conta dos porcos da fazenda. Esses porcos eram o grande orgulho do fazendeiro. Gordos, bonitos, rendiam um bom dinheiro… Mas comiam muito, fediam muito e bem que davam trabalho. Qualquer esforço para tomar conta deles era sempre bem-vindo.
·           Tudo bem. Então vá cuidar da lavagem deles.
Era duro. Uma espécie de trabalho de lixeiro. Pedro tinha que ir de casa em casa, por toda a fazenda, recolhendo restos de comida, cascas de frutas, alimentos estragados, todo tipo de sobra, e botando tudo nuns latões enormes e pesados, que cheiravam mal. Depois carregava baldes d’água do ribeirão, misturava tudo, jogava nos cochos e abria a porteira do cercado. Os porcos entravam correndo, derrubando uns aos outros, e se amontoavam para a comilança. No meio de uma sujeirada incrível.
Mas Pedro não desanimou. Fez tudo direitinho, no capricho. Quando acabou, perguntou ao patrão:
·           Agora posso levar os porcos para passear?
Passear? Nunca ouvi falar em porco passeando. Ficou maluco?
·           Com todo o respeito, senhor, eu sempre ouvi dizer que exercício faz bem aos animais, a carne deles rende mais e fica maciazinha… Dá um preço ótimo na hora de vender.
Os olhos do fazendeiro brilharam, e ele perguntou, interessado:
·           E como é que você vai levar esses porcos para passear?
·           Ah, patrão, numa fazenda colossal como esta, com toda a certeza não vai faltar um lugar bem especial para seus porquinhos fazerem exercícios. Eu fico tomando conta, como se fosse um pastor, um vaqueiro…
O patrão deu risada:
Um porqueiro, você quer dizer. Mas… pode levar. Só tenha cuidado para eles não se soltarem, não invadirem as roças, não darem prejuízo.
·           Pode deixar, patrão. Já vi um lugar aqui perto que tem uma laminha muito simpática. Acho que eles vão gostar bastante.
Isso foi o que Pedro disse. O que ele não disse é que passara a noite carregando água do córrego para jogar num terreno à beira da estrada, que tinha sido capinado e estava pronto para ser plantado. A noite inteira, para lá e para cá. Desse jeito, Pedro tinha preparado um lamaçal colossal. Levou os porcos diretamente para lá, sentou-se me cima de uma pilha de tábuas que também tinha deixado preparadas e esperou.
Quando apareceu ao longe um caminhão vazio ele fez sinal. O motorista parou. Pedro disse que o patrão estava numa emergência, tivera que fazer uma viagem de urgência e o encarregara de vender logo aqueles porcos, bem baratinho, para mandar dinheiro para ele. Conversa vai, conversa vem, negociou a venda de todos os animais. Com uma única condição: os rabinhos tinham que ficar.
·           É para eu poder prestar contas – explicou.  Ele saiu tão depressa que nem teve tempo de contar. Assim a gente controla exatamente quantos porcos foram vendidos.
O sujeito achou esquisito, mas concordou. Estava com pressa. Queria fechar logo o negócio, antes que surgisse um concorrente pela estrada. Ou que aquele caipira se arrependesse de vender uns animais tão bonitos por um preço tão abaixo do que eles poderiam ser revendidos no mercado. E com os olhos brilhando, enquanto fazia contas mentalmente e calculava o lucro que ia ter, o motorista do caminhão ajudou Pedro a cortar o rabo dos animais e a guardar na carroceria todos os porcos, que subiram por uma rampa improvisada com as tábuas da pilha onde ele estava sentado.
Num instante, os dois se despediram, e o caminhão sumiu na estrada. Com toda aquela porcalhada.
Pedro pôs no bolso o dinheiro da venda e disse pra si mesmo:
·      Agora estou descontando os descontos. Se eu fosse deixar de graça tudo o que tiraram de mim nessa fazenda colossal…
Depois pegou os rabinhos, que tinha deixado separados em cima das tábuas, e foi espetando todos na lama, a uma boa distância uns dos outros. Todos menos um, que ficou segurando.
Feito isso, foi para a casa da fazenda. Quando estava chegando lá perto, começou a correr e a gritar, como se tivesse vindo esbaforido o tempo todo:
·      Socorro! Acudam! Estou precisando de toda ajuda!
Foi uma correria, todo mundo em volta, e ele fingindo que estava sem fôlego, que nem conseguia falar.
·      O que foi?
·      O que está acontecendo?
E o patrão:
·      Cadê meus porcos?
Depois de muito ofegar, beber um copo d’água e fazer de conta que estava sem forças, Pedro finalmente explicou:
·      Levei os bichinhos para passear num lugar onde não tinha nada plantado, e eles descobriram um bom lamaçal. Um lamaçal colossal. Eles adoraram…
Nossa… Não dá pra curtir, propriamente. Mas dói de ler. Ah, dói… Sim, e daí? Conte logo! Onde estão meus animais?
·      Estão lá, fique sossegado…   
·      Então, pra que esse escândalo?
·      Bom, patrão, é que era um lamaçal tão colossal que eles foram se afundando aos pouquinhos.
·      Afundando? Como assim?  
·      Afundando, uai! Ficando com as pernas presas e indo para o fundo, devagarzinho. Quando eu vi, tentei segurar o que estava mais perto. Puxei, puxei, mas não adiantou nada. Olha só! O rabo dele ficou na minha mão, e o coitadinho foi sumindo…
E mostrou o rabinho que guardara.
Foi um espanto! Todo mundo queria ver. O rabo, todo enroladinho, passava de mão em mão. Pedro continuou:
·      Eu então vi que não dava conta sozinho e vim correndo pedir ajuda.
Vamos todos para lá! – ordenou o fazendeiro.
É isso mesmo – concordou Pedro.  Mas é muito porco, nem sei se vai dar. Se o senhor me der licença, eu posso também fazer outra coisa para ajudar.
·      O quê?  
·      Se o senhor me autorizar, eu posso selar uma mula e ir até o vizinho pedir reforço. Ele tem um trator bom, a gente pode amarrar umas cordas fortes nos bichos… Fica mais fácil puxar.
·      Boa ideia! – concordou o patrão.  Mas não vai perder tempo selando mula, não. Monte logo no meu cavalo, que é veloz e já está arreado. Assim vai mais ligeiro.
Era isso mesmo que Pedro queria.
Num instante já estava longe, na direção oposta à do lamaçal colossal. A cavalo e com dinheiro no bolso.
E o patrão, se não estiver esperando reforço até hoje, já deve estar com uma boa coleção de rabinhos de porco na mão. Ou ele estava pensando que ia continuar para sempre explorando todo mundo, sem nunca lhe acontecer nada, naquela fazenda colossal?
A Velhinha Inteligente
Esta é uma história que se conta até hoje na cidade de Carcassonne, ao sul da França. Há várias versões do mesmo caso, mas todas concordam num ponto: a cidade foi salva graças à esperteza de uma mulher.
Há muitos e muitos séculos, a próspera cidade de Carcassonne foi cercada por guerreiros inimigos. Embora protegida por muralhas e portões, a população não estava a salvo: como ninguém pudesse sair, aos poucos a comida foi escasseando. Logo chegou o dia em que ninguém mais tinha o que comer, e os inimigos, do lado de fora, resistiam teimosamente, esperando a rendição da cidade.
Então, o governador de Carcassonne, refletindo sobre a gravidade da situação, resolveu que era preferível entregar-se a ver seu povo morrer de fome. Entretanto, assim que ele anunciou a todos a sua resolução, uma senhora, madame Carcas, já bem idosa e por isso mesmo muito experiente, adiantou-se e disse que tinha um plano para salvar a cidade.
·         Todos riram dela, porém como já se consideravam perdidos, acharam que não faria mal escutá-la.
·         Primeiro, tragam-me uma vaca – pediu ela.
·         Uma vaca?!? – exclamaram. – E como vamos achar uma vaca?
Mas madame Carcas insistiu e todos se puseram a procurar de casa em  casa.
Vira daqui, revira de lá, encontraram, por fim, uma vaca muito magra, na casa de um avarento, que a havia escondido por medo de morrer de fome. Ele bem que reclamou, mas o animal foi levado até a velha senhora.
·           Agora – disse ela – juntem tudo o que puderem de alimentos, restos, cascas, o que encontrarem!
Assim fizeram todos, conseguindo juntar um saco cheio de restos de cereais.
·           Muito bem – aprovou a madame. – Deem tudo isso à vaca!
·           À vaca?!? Isso é um absurdo! Todos nós temos fome!
·           Pois deem tudo à vaca e não vão se arrepender – garantiu a velhinha.
Não sem relutar, fizeram o que ela dizia. A vaca rapidamente engoliu aquilo que para todos parecia um banquete desperdiçado.
·           Agora, abram com cuidado os portões e deixem a vaca sair – ordenou a senhora.  
·           Essa velha é louca! – gritaram alguns. Mas como madame insistisse com tanta segurança, resolveram obedecer-lhe até o fim.
Do lado de fora, a tropa inimiga percebeu que os portões da cidade se abriram.
Intrigados, viram que uma vaca escapava. Mais do que depressa, capturaram o animal e o levaram para seu chefe de armas.
·           Veja, senhor, eles deixaram uma vaca escapar! Graças a esse descuido, hoje teremos um bom jantar!
O chefe, intrigado, ordenou que matassem a vaca. Mas, quando abriram a barriga do animal e ele a viu forrada de cereais, muito preocupado, concluiu:
·           Soldados! Se os habitantes dessa cidade ainda têm tantas provisões que podem alimentar suas vacas e além disso se dar ao luxo de deixá-las escapar, é sinal de que poderão resistir ainda por muito tempo. É melhor nos retirarmos, pois certamente morreremos de fome antes deles.
Assim, os inimigos foram embora e a cidade foi salva.
Dizem que a velhinha, vendo partir os soldados, subiu à torre da igreja e começou a tocar o sino, em sinal de vitória. Ouvindo aquilo, o povo gritou:
·           Viva! Carcas sonne! – que em francês quer dizer “Carcas está tocando o sino”.
É por isso que a cidade foi chamada de CARCASSONNE.
(PAMPLONA, Rosana. Novas Histórias Antigas. São Paulo (SP): Brinque-book, 1998; pp.23-26)
Sapo com Medo de Água (versão 1)
O sapo é esperto. Uma feita o homem agarrou o sapo e levou-o para seus filhos brincarem. Os meninos judiaram dele muito tempo e, quando se fartaram, resolveram matar o sapo. Como haviam de fazer?
–        Vamos jogar o sapo nos espinhos!
–        Espinhos não furam o meu couro – dizia o sapo.
–        Vamos queimar o sapo!  
–        Eu no fogo estou em casa!  Vamos sacudir ele nas pedras!
–        Pedra não mata sapo!
–        Vamos furar de faca!
–        Faca não atravessa!
–        Vamos botar o sapo na lagoa!
Aí o sapo ficou triste e começou a pedir, com voz de choro:
–        Me bote no fogo! Me bote no fogo! Na água eu me afogo! Na água eu me afogo!
–        Vamos para a lagoa – gritaram os meninos.
Foram, pegaram o sapo por uma perna e, fxirn bum, rebolaram lá no meio. O sapo mergulhou, veio em cima da água fritando satisfeito:
–          Eu sou bicho d’água! Eu sou bicho d’água!
Por isso quando vemos alguém recusar o que mais gosta, dizemos:
–                    É sapo com medo de água…
–                     
(CASCUDO, Luis da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo: Global, 2004; . São Paulo: Global, 2004;p.196.)
Sapo com Medo D´Água (versão 2)
Dois homens, fugidos da prisão, pararam na beira da lagoa para matar a sede e descansar um pouco.
Um sapo dormia debaixo da samambaia.
Os bandidos agarraram o sapo.
–        Olha que desengonçado! – disse um deles, apertando o bicho entre os dedos.
–        É feio que dói! – completou o outro, com cara de nojo.
E os dois resolveram fazer maldade.
–        Vamos jogar no formigueiro?
Ouvindo isso, o sapo estremeceu. Por dentro. Por fora, abriu um sorriso indiferente.
–        Que nada – respondeu o outro, percebendo que o sapo não estava nem ligando. – Pega a faca. Vamos picar ele todinho.
O sapo, de olhos fechados, começou a assobiar uma linda melodia.
Os dois bandidos queriam dar um jeito de fazer o sapo sofrer.
–        Sobe na árvore e atira ele lá do alto.
–        Pega o fósforo e acende uma fogueira. Vamos fazer churrasco de sapo!
O sapo espreguiçava-se tranquilo entre os dedos do homem.
Um dos bandidos teve outra ideia.
–        Já sei! Vamos afogar o desgraçado na lagoa!
Foi quando o sapo deu um pulo desesperado e começou a gritar:
–        Tudo menos isso!
Os malfeitores, agora sim, tinham chegado onde queriam.
–        Vai pra água, sim senhor!
–        Não sei nadar! – berrava o sapo.
–        Então vai morrer engasgado!
O bicho esperneava:
–        Socorro!
–        Vai sufocar de tanto engolir água!
–        Não!
–        Vai virar comida de jacaré!
–        Tenho mulher e filhos pra cuidar!
–        Joga bem longe!
–        Me acudam!
–        Lá vai!
O homem atirou o sapo no fundo da lagoa. O sol estava redondo.
O sapo – ploft – desapareceu no azul bonito das águas.
Depois voltou risonho, mostrou a língua e foi embora nadando e cantando e dançando e requebrando n’água, feliz da vida.
(AZEVEDO, Ricardo. Meu livro de folclore. São Paulo (SP): Ática, 2006; p.5-8.)
O Sapo e o Coelho
O Coelho vivia zombando do Sapo. Achava-o preguiçoso e lerdo, incapaz de qualquer agilidade. O sapo ficou zangado:
–        Quer apostar corrida comigo?
–        Com você? – assombrou-se o coelho.
–        Justamente! Vamos correr amanhã, você na estrada e eu pelo mato, até a beira do rio…
O coelho riu muito e aceitou o desafio. O sapo reuniu todos os seus parentes e distribuiu-os na margem do caminho, com ordem de responder aos gritos do coelho.
Na manhã seguinte os dois enfileiraram-se e o coelho disparou como um raio, perdendo de vista o sapo que saíra aos pulos. Correu, correu, correu, parou e perguntou:
–        Camarada Sapo?
Outro sapo respondia dentro do mato:
–        Oi?
O coelho recomeçou a correr. Quando julgou que seu adversário estivesse bem longe, gritou:
–        Camarada Sapo?
–        Oi? – coaxava um sapo
Debalde o coelho corria e perguntava, sempre ouvindo o sinal dos sapos escondidos. Chegou à margem do rio exausto mas já encontrou o sapo, sossegado e sereno, esperando-o. O coelho declarou-se vencido.
(CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo (SP): Global, 2004; p.186.)
A Dona Raposa e os Peixes
Um dia, bem cedinho, seu Raposa andava pelo bosque. Ao passar perto de um rio, viu uma quantidade enorme de peixes nadando. Entusiasmado, ele começou a pescar. Eram tantos os peixes, e seu Raposo estava tão esfomeado, que em pouquíssimo tempo pescou três lindas traíras.
Muito alegre, foi para casa e disse à mulher, ao chegar:
–        Dona Raposinha, olhe só a sorte que tive hoje!
–        Oh! Que traíras enormes! – exclamou dona Raposa, já com água na boca.
–        Pois é. Eu como uma, você outra e ainda vai sobrar uma… Por isso, eu pensei em convidar seu Tigre para almoçar; é sempre bom agradá-lo…
–        Você é quem manda, querido Raposo. Vou fritar com muito cuidado essas traíras. Vão ficar deliciosas! Ande, vá convidar seu Tigre!
Seu raposo esfregou as mãos satisfeito e saiu em busca de seu Tigre. Dona Raposa se pôs a preparar os peixes. Quando ficaram bem fritos, o cheiro era tão apetitoso que ela murmurou:
–        Vou experimentar minha traíra para ver se ela ficou boa de sal. Só um pedacinho de nada, pois ia ser bem chato se eu a comesse inteira antes de seu Raposo chegar com o convidado!
Ela começou a beliscar o peixe e achou-o tão saboroso que se esqueceu do que havia dito. Em poucos segundos o prato ficou limpo.
–        Estava deliciosa! Agora preciso experimentar a do Raposo; ele é muito delicado e, se sua traíra não estiver bem frita, com certeza vai ficar zangado!
Comeu a cauda torrada, depois uma das barbatanas, a seguir a cabeça e, quando percebeu, toda a traíra de seu Raposo havia desaparecido.
–        Meu Deus, comi inteirinha! – ela exclamou.
 – Mas, agora, o estrago está feito. Então não faz mais diferença se eu comer também a última!
E, do mesmo jeito, comeu a última traíra.
Por fim, chegou seu Raposo, acompanhado de seu Tigre, e perguntou à mulher:
–        Preparou as traíras?
–        Claro que sim! Ainda estão no fogo para que não esfriem – ela mentiu.
–        Sirva logo, porque estamos com muito apetite. Não é verdade, seu Tigre?
–        Sem dúvida, seu Raposo. Eu, pelo menos… E com esse cheirinho de peixe frito que há por aqui…
–        Vou pôr à mesa – disse dona Raposa. – Sente-se ali, seu Tigre. Aquele é o seu lugar.
–        Obrigado, dona Raposa.
Seu Tigre sentou-se e Dona Raposa chamou o marido de lado.
–        Vá até o quintal e afie bem as facas, pois as traíras eram muito velhas e ficaram duras demais – ela falou.
Seu raposo correu até o quintal, e dali a pouco podia-se ouvir o barulho que faziam as facas contra a pedra de amolar.
Dona Raposa se aproximou de seu Tigre e lhe disse:
–        Você está ouvindo? É meu marido que está amolando uma faca. Ficou louco e meteu na cabeça que quer comer suas orelhas, seu Tigre; para isso é que ele trouxe você até aqui. Fuja logo, antes que ele volte, por favor!
Seu Tigre se assustou e saiu da casa a todo vapor.
Então, dona Raposa começou a gritar:
–        Seu Raposo, seu Raposo! Venha logo, que seu Tigre fugiu levando todas as traíras!
E seu Raposo, com uma faca em cada mão, começou a correr atrás de seu Tigre, gritando:
–        Seu Tigre, seu Tigrinho! Me dê pelo menos uma!
E o Tigre, achando que seu Raposo se referia às suas orelhas, apertou o passo, morrendo de medo, e não parou até estar bem fechado e seguro em sua casa.
(Conto Tradicional Venezuelano – Contos de Artimanhas e Travessuras. Co-edição latino-americana. Editora Ática. 1988. São Paulo.)
De como o Malasartes fez o Urubu falar
Quando o pai de Pedro Malasartes entregou a alma a Deus, fez-se a partilha dos bens, uma casinha velha, entre os filhos, e tocou a Pedro uma das bandeiras da porta da casa, com o que ele ficou muito contente.
Pôs a porta no ombro e saiu pelo mundo. Em caminho, viu um bando de urubus sobre um burro morto. Atirou a porta sobre eles e caçou um urubu que ficou com a perna quebrada.
Apanhou-o, pôs a porta às costas e continuou viagem.
Obra de uma légua ou mais, avistou uma casa de onde saía fumaça, o que queria dizer que se estava preparando o jantar.
Pedro Malasartes, que sentia fome, bateu à porta e pediu de comer.
Veio antendê-lo uma preta lambisgóia que foi logo dizer à patroa que ali estava um vagabundo, com um urubu e uma porta, a pedir de jantar.
A mulher mandou que o despachasse – que a sua casa não era coito de malandros.
O marido estava de viagem e a mulher no seu bem bom a preparar um banquete para quem ela muito bem o destinava. Neste mundo há coisas!
Pedro Malasartes, tão mal recebido que foi, resolveu subir para o telhado, valendo-se da porta que trazia e lhe serviria de escada. Subiu e ficou espreitando o que se passava naquela casa, tanto mais que sentia o cheiro dos bons petiscos.
Espiando pelos vãos das telhas viu os preparativos e tomou nota das iguarias, e ouviu as conversas e confidências da patroa e da negra.
Justamente na hora do jantar chegou o dono da casa que resolveu voltar de inesperado da viagem que fazia.
Quando a mulher percebeu que ele se aproximava mandou esconder os pratos do banquete e veio recebê-lo e abraçá-lo, muito fingida, muito risonha, mas por dentro queimando de raiva.
Vai daí mandou pôr na mesa a janta que constava de feijão aguado, paçoca de carne seca e cobu, dizendo:
–        Por que não avisou, marido? Sempre se havia de aprontar mais alguma coisa…
Sentaram-se à mesa.
Pedro Malasartes desceu de seu posto e bateu na porta, trazendo o urubu.
O dono da casa levantou-se e foi ver quem era.
O rapaz pediu-lhe um prato de comida e ele chamou-o para a mesa a servir-se do pouco que havia.
A mulher estava desesperada, desconfiando com a volta de Malasartes.
Pedro tomou assento, puxou o urubu para debaixo da mesa, preso pelo pé num pedaço de corda de pita.
Estavam os dois homens conversando, quando de repente o Malasartes pisou no pé quebrado do bicho e este se pôs a gritar: uh! uh! uh!
O dono da casa levou um susto e perguntou que diabo teria o bicho.
Pedro respondeu muito sério:
–        Nada! São coisas. Está falando comigo.
–        Falando! Pois o seu bicho fala?!
–        Sim, senhor, nós nos entendemos. Não vê como o trago sempre comigo? É um bicho mágico, mas muito intrometido.
–        Como assim?
–        Agora, por exemplo, está dizendo que a patroa teve um aviso oculto da volta do senhor e por isso lhe preparou uma boa surpresa.
–        Uma surpresa! Conte lá isso como é.
–        É deveras! Uma excelente leitoa assada que está ali naquele armário…
–        Pois é possível! Ó mulher, é verdade o que diz o urubu desse moço?
Ela com receio de ser apanhada com todo o banquete e certa de que Pedro sabia da marosca, apressou-se em responder:
–        Pois então? Pura verdade. O bicho adivinhou. Queria fazer-te a surpresa no fim do jantar.
E gritou pela preta:
–        Maria, traz a leitoa.
A negra veio logo correndo, mas de má cara, com a leitoa assada na travessa.
Daí a pouco, Pedro Malasartes pisou outra vez no pé do urubu que soltou novo grito.
–        O que é que ele está dizendo?
–        Bicho intrometido! Está candongando outra vez. Cala a boca, bicho!
–        O que é?
–        Outras supresas.
–        Outras?!
–        Sim, senhor: um peru recheado…
–        É verdade, mulher?
–        Uma surpresa, maridinho do coração. Maria, traz o peru recheado que preparei para o teu amo.
Veio o peru. E pelo mesmo expediente conseguiu Pedro Malasartes que viessem para a mesa todas as iguarias, doces e bebidas que havia em casa.
Ao fim do jantar, o dono da casa, encantado com as proezas do urubu, propôs comprá-lo a Pedro Malasartes, que o vendeu muito bem vendido, enquanto a mulher e a preta bufavam de raiva, crentes também, no poder mágico do bicho que, assim, seria um constante espião de tudo quanto fizessem.
Fechado o negócio, Pedro Malasartes partiu satisfeito e vingado.
(Lindolfo Gomes. Contos populares. São Paulo, Companhia Melhoramentos, v. 1. In APOCALYPSE, Mary (org.). Publicado no site Estórias e lendas de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro: http://www.jangadabrasil.com.br/janeiro/cd50100c.htm#apocalypse)
Referências para leitura
CASCUDO, Luís da Câmara. Contos Tradicionais do Brasil. São Paulo(SP): Global, 2004.
MACHADO, Ana Maria. Jabuti Sabido e Macaco Metido. Rio de Janeiro(RJ): Objetiva; 2011(faz parte do acervo do PNLD 2013, 2014, 2015).
PAMPLONA, Rosana. Novas Histórias Antigas. São Paulo(SP): Brinque-Book, 1998.
VASQUEZ, Adolfo Sanchez. ÉticaRio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
VÁRIOS AUTORES. Contos Populares para Crianças da América Latina. Coedição latino-americana. São Paulo(SP): Editora Ática, 1994.



[1] Formadoras do Programa “Ler e Escrever”  Kátia Lomba Bräkling (Supervisora de Língua Portuguesa). Julho de 2014. CEFAI
[2] O conto “A Velhinha Inteligente”, por exemplo, apresentado a seguir, refere-se à cidade de Carcassonne, localizada no sul da França (PAMPLONA, Rosana. Novas Histórias Antigas. São Paulo: Brinque-book.). Contos de Esperteza[1]
Fragmento do projeto produção de final de contos de  esperteza
 Arte e manha na escrita de autoria
Contos de artimanha: narrativas, geralmente curtas, nas quais os personagens – humanos ou animais – utilizam-se de ardis (armadilhas ou disfarces), truques, malandragens, gambiarras e espertezas para garantir sua sobrevivência ou mesmo a vitória contra forças maiores que a sua.
Em tais contos – de artimanha; ou de manhas e artimanhas; ou de astúcia, ou ainda, de esperteza, como costumam ser denominados – a trama é sempre organizada em torno de um personagem que utiliza a esperteza para obter o que deseja, ludibriando outro – ou outros – personagem ingênuo ou, pelo menos, não tão esperto como o protagonista. Dessa maneira, os ardis são sempre inesperados e engenhosos, nunca havendo uso de estratégias usuais e previsíveis.
Estes protagonistas – que podem ser pessoas ou animais – acabam por representar a possibilidade de ludibriar certos valores da sociedade que os segrega ou exclui, valores estes sintetizados na figura de seu antagonista. Assim, podem ser personagens que sofrem pela pobreza, o que lhes acarreta ausência de dinheiro, de comida e bens materiais; podem sofrer por problemas que se realizam no interior da família (ou de um casal, como a traição) que desafiam astuciosamente os valores morais vigentes; podem, ainda, ser alvo do autoritarismo de representantes de classes sociais hierarquicamente superiores.
(…) Os contos de artimanha são comumente organizados no eixo temporal, quer dizer, as ações narradas são apresentadas em uma ordem e sequência de tempo claramente indicadas. O tempo da narrativa costuma ser indefinido, mas o local pode ser especificado em alguns textos, já que se referem à tradição oral e, dessa forma, a sua origem histórica pode remeter a uma região específica[2]. As relações de causalidade marcam a progressão temática no que se refere à relação  existente entre os motivos do protagonista, a estratégia que desenvolve para resolver o problema colocado a ele e às consequências/resultados do plano executado.
Nestes contos não há a presença do elemento mágico típico dos contos de fadas e de encantamento: a astúcia do protagonista o substitui. Tampouco há príncipes, reis e princesas: sendo assim, quando acontece a resolução do problema por meio do casamento, este acontece com a filha do patrão, por exemplo.
Do ponto de vista especificamente textual, a artimanha do protagonista costuma ser apresentada ao leitor – e comumente também aos seus antagonistas – no momento em que está sendo desenvolvida na história, e não de maneira antecipada. Quer dizer: em tais textos, não é usual que haja antecipação do plano do personagem esperto ao leitor; ao contrário, este toma conhecimento do plano na medida em que está sendo posto em ação, o que coloca suspense no texto, quase sempre surpreendendo, ao final, tanto personagens quanto leitores.
IMPORTANTE SABER
·      Nos contos de artimanha a trama é conduzida sob a ótica de um herói malandro que troça de ricos, poderosos, de instituições, mas também de indivíduos comuns cujo comportamento destoa de um padrão convencional.
Na trama, o protagonista costuma agir: a) para melhorar a sua situação ou a situação de um aliado, procurando obter recompensa, ou então explorando uma situação que possa lhe render algum benefício material; b) para proteger-se de uma ameaça ou agressão, vinda de alguém que o subestima, e/ou explora ou a um aliado; c) punir um oponente, vingando-se dele.
Como ficam esses aspectos quando se trata de contos que envolvem apenas animais?
Nesse caso, a esperteza e a astúcia são as únicas armas de que o animal de porte pequeno dispõe – com possibilidade de vitória – para enfrentar o inimigo mais forte. O antagonista é representado, portanto, por aquele que é superior ao esperto em relação à força física e tamanho. Isso se justifica considerando que na lógica da natureza, sobrevive quem é mais forte. O conto de esperteza mostra a possibilidade de subverter essa lógica por meio da esperteza
·      Na fábula, os animais representam as virtudes e defeitos humanos, segundo a visão do homem. Este é o critério de seleção dos mesmos para a composição da trama. Por exemplo: a raposa costuma representar a astúcia; o coelho, a rapidez, agilidade; o macaco, traquinagem e esperteza; a cegonha, a pureza, maternidade, bondade.
A finalidade da fábula é mostrar ao homem a sua condição e regras morais que deveria respeitar. Assim sendo, a característica de cada animal é apenas servir ao propósito de ensinar ao homem por meio de uma comparação.
As relações estabelecidas entre os animais das fábulas são, portanto, diferentes daquela estabelecida no conto de artimanha: nestes, o que vale é a possibilidade de subverter uma relação de predador-presa; uma ideia de que o maior e mais forte fisicamente sobrevive pela seleção natural. Nas fábulas isso não se coloca.
Conhecendo  um conto e seu personagem principal
Pedro Malasartes e o Lamaçal Colossal
Objetivo:
·      Conhecer um conto de artimanha e familiarizar-se com algumas das características desse tipo de conto.
Encaminhamentos:
Leitura de um conto de artimanha pela professora
Avise aos alunos que você lerá um conto de artimanha, chamado “Pedro Malasartes e o Lamaçal Colossal”, do livro “Histórias à Brasileira”. Antes da leitura, pergunte à classe:
·      Vocês já ouviram falar em contos de artimanha?
·      Que tipo de conto pode ser esse?
·      Será que a palavra artimanha pode ajudar a entender do que se trata?
Discuta as respostas, procurando referenciar-se, sobretudo, na palavra artimanha, discutindo seu significado, comparando com sinônimos, por exemplo.
Leia o texto todo. Após a leitura proponha uma discussão sobre o texto lido, fazendo perguntas como:
·      Vocês já conheciam histórias parecidas com essa?
·      Já tinham ouvido falar do Pedro Malasartes?
·      Por que será que esse conto pode ser chamado de conto de artimanha?
AMPLIANDO INFORMAÇÕES
Pedro Malasartes
De acordo com o pesquisador da cultura nacional Luís Câmara Cascudo, “Pedro Malasartes [ou Malazartes] é figura tradicional nos contos populares da Península Ibérica, como exemplo de burlão invencível, astucioso, cínico, inesgotável de expedientes e de enganos, sem escrúpulos e sem remorsos.”
A menção mais antiga feita ao personagem é na cantiga 1132 do Cancioneiro da Vaticana, datado do século XIII e XIV:
“chegou Payo de Maas Artes com seu cerame de chartes… semelha-me busuardo viindo en ceramen pardo… log’ouve manto e tabardo”.
Há informações de que até mesmo o grande romancista, dramaturgo e poeta espanhol Miguel de Cervantes Saavedra, escreveu sobre este ícone em sua comédia PEDRO DE URDEMALAS, que compõe o livro Ocho comedias y ocho entremeses nuevos (1615).
Outras versões deste personagem surgem em várias regiões da Europa, como Pedro Urdemales em Castela, Till Eulenspiegel na Alemanha e Pedro de Urdes Lamas na Andaluzia.
Duas óperas brasileiras tem o personagem por protagonista: Malazarte de Oscar Lorenzo Fernández e Graça Aranha, e Pedro Malazarte, de Mozart Camargo Guarnieri e Mário de Andrade.
Na literatura, vários autores usaram o personagem e nos cinemas o ele tomou corpo com As Aventuras de Pedro Malasartes, de 1960, com Mazzaropi no papel principal.”
Fontes: http://www.ebc.com.br; Cancioneiro da Vaticana, Biblioteca Digital do Alentejo, p. 281;
Leitura Compartilhada e Análise do Conto de Artimanha “A Velhinha Inteligente”
Objetivo
·      Ampliar – e aprofundar – conhecimentos sobre a linguagem e os recursos discursivos presentes nos textos apresentados para leitura.
Encaminhamentos
Estudo do conto junto à classe.
Retome o conto do Pedro Malazarte, lido na aula  anterior, e faça uma nova leitura com a classe, com o objetivo de que todos recuperem a história.
Entregue o texto A Velhinha Inteligente para os alunos. Leia-o enquanto eles acompanham. No final, comece, então, o estudo do texto a partir de questões orientadoras. A intenção, nesse momento, é aprofundar a compreensão dos alunos e, ao mesmo tempo, estudar os recursos discursivos e linguísticos nele apresentados.
Entregue o texto para os alunos.
Para o estudo do conto “A Velhinha Inteligente”, sugerimos as seguintes questões:
Essa é uma história criada por um autor ou que vem sendo contada de boca em boca, ao longo do tempo. 
1)      Como é possível saber isso?
2)      Onde encontramos pistas no texto a esse respeito?
Comentários:
Na discussão com os alunos, oriente para que procurem no texto o trecho que contém pistas sobre a resposta. Nesse caso, o primeiro parágrafo já indica que a história é antiga, conhecida de todos, e que vem se modificando ao longo do tempo.
É importante remeter o aluno à fonte – caso eles não recorram a ela espontaneamente – para problematizar dois aspectos:
·      o primeiro refere-se à presença da autoria que, nesse caso, relaciona-se com a reescrita, a elaboração de uma nova versão da história pelo escritor indicado;
·      o segundo aspecto refere-se ao título da obra – Novas Histórias Antigas – que ratifica a ideia de que são histórias que já existem há muito tempo e que estão sendo recontadas pela autora.
3)      Em qual trecho inicial o leitor já tem uma pista de que pode se tratar de um conto de artimanha?
Comentários:
Pretende-se que os alunos recuperem uma das características fundamentais do conto de artimanha, que é a presença de um protagonista esperto, engenhoso.
Logo no primeiro parágrafo há uma pista a respeito, quando se diz que “a cidade foi salva graças à esperteza de uma mulher”.
4)      É possível saber no início do conto qual era o plano da madame Carcas para salvar a cidade dos guerreiros inimigos?
Comentários:
Esta pergunta remete à uma estratégia discursiva e textual dos contos de artimanha que é a de não apresentar previamente o “plano” do protagonista para o leitor e demais personagens da história. Nestes contos, o estratagema do protagonista vai sendo conhecido na medida em que vai sendo desenvolvido. Isto provoca um suspense durante a narrativa e um final inusitado, não esperado, que surpreende a todos, resultado do ardil, da esperteza e da inteligência do protagonista.
Nesse sentido, espera-se que os alunos percebam que – no texto – o plano não é anunciado e depois executado; ao contrário, ele só vai sendo conhecido quando posto em prática, aos poucos. A madame Carcas não conta à população da cidade o que vai fazer. Apenas vai dando ordens a todos, para providenciarem isso e aquilo. Só ao final é que se pode ter uma ideia de tudo o que ela engendrou para conseguir vencer o inimigo.
Para responder a esta questão, os alunos precisarão ir identificando o modo pelo qual ficam sabendo – ao ler o texto – do plano da senhora Carcas. Isso remete à localização de informações em diferentes trechos do texto, e à articulação de todos eles para a totalização do plano, em si. Os diferentes trechos seriam relativos aos pedidos que a madame vai fazendo à população, os quais são fundamentados no conhecimento que ela tem dos moradores da cidade – já que ela é uma velhinha, ou seja, antiga moradora e, dessa forma, conhecedora da população – e, além disso, no seu intento: enganar os inimigos, conhecendo também seu ponto fraco.
Para responder a questão é preciso, antes de qualquer coisa, identificar o plano, o que remete à articulação das informações dos trechos e elaboração da ideia totalizadora do plano. Dito em outras palavras, só se compreende qual é o plano no final do texto, e não antes, depois de todas as etapas executadas.
Sintetizando: o plano da Madame Carcas era induzir o inimigo a ir embora, fazendo-o acreditar que a cidade tinha condições de resistir muito tempo, mais do que eles, pois tinham alimentação suficiente para continuar resistindo ao cerco. Como ela faz isso? Mostrando aos soldados que tinham muitas provisões, o que é conseguido com a “fuga” da vaca. Na verdade, Madame Carcas antecipa a reação dos soldados, que estavam morrendo de fome: se a cidade deixasse “escapar” a vaca, bem alimentada, certamente os soldados a matariam para comer. Ao fazerem isso, veriam como estava bem alimentada. Concluiriam que a população tinha muitas provisões e, dessa forma, poderiam resistir ao cerco por muito mais tempo que eles.
d) Por que todos acham um absurdo os pedidos que a Madame Carcas vai fazendo durante a história?
Comentários:
Para responder a essa questão os alunos precisarão analisar a reação dos moradores dentro da situação em que se encontravam: sitiados e com fome, por causa da escassez de alimentos. Os pedidos da Madame Carcas estavam levando a população a abrir mão dos últimos alimentos que tinham à disposição, o que – aparentemente – a colocava em desvantagem em relação ao inimigo.
Nessa questão é importante que sejam analisados cada pedido feito e de que modo se relacionam com o plano urdido pela protagonista. Além disso, é preciso levar em conta quem era ela: uma antiga moradora que, dessa forma, conhecia muito bem todo mundo. Esse fato, por exemplo, possibilitou que ela inferisse que o avarento da cidade tivesse escondido uma vaca na sua casa.
É importante articular a discussão dessa questão com o estudo feito na questão anterior.
e) Por que o plano de Madame Carcas dá certo?
Comentários:
Articule essa discussão com a das duas questões anteriores. Focalize que o plano dá certo por vários motivos:
1)      a velha senhora conhece as condições em que o inimigo está (com fome, também, e sem provisões);
2)      ela sabe que a saída é fazer com que os soldados desistam do cerco, pois a cidade não resistiria por muito tempo;
3)      Madame Carcas antecipa uma razão que poderia levar os soldados à desistência: imaginar que a cidade está mais forte;
4)      a velha senhora conhece muito bem a população, e sabe, inclusive que há um avarento que, provavelmente, estaria escondendo uma vaca na sua casa;
5)      Madame Carcas consegue antecipar a reação dos soldados e a conclusão a que chegaria o chefe deles.
f) Algumas palavras e expressões usadas no texto indicam que ela tinha muita certeza que seu plano daria
   certo. Quais são elas?
Comentários:
Nesta questão pretende-se que os alunos estejam atentos para os recursos linguísticos empregados no texto, as palavras selecionadas para indicar a certeza da senhora. Isso é fundamental no texto porque ratifica uma característica da protagonista: ser inteligente e saber muito bem o que estava fazendo.
g) De que forma o plano de Madame Carcas é revelado no texto?
Comentários:
A intenção, com essa pergunta, é deslizar da discussão do conteúdo semântico, em si, para a estratégia textual. Ou seja, é focalizar que o plano não foi apresentado para o leitor primeiro para, depois, fosse mostrado de que maneira foi desenvolvido e executado na cidade, junto à população.
Nesse momento, é possível que você apresente para os alunos uma alternativa de redação, caso a estratégia textual não seja observável para eles.
A alternativa poderia ser a seguinte: pegue o conto lido e, depois do 4º parágrafo, que termina com “não faria mal escutá-la”, introduzam o seguinte trecho:
“A velha senhora, então, revelou à população o que pretendia fazer:
Precisamos enganar os soldados fazendo com que eles pensem que podemos resistir mais do que eles. Vamos fazer com que pensem que temos provisões de sobra e que eles não aguentarão tanto tempo quanto nós. Meu plano, então, é o seguinte: pegamos uma vaca, damos de comer a ela com os alimentos que nos restam e deixamos que ela “escape” da cidade. Eles, famintos como estão, certamente vão tentar comer a vaca… Então, primeiro, tragam-me uma vaca – pediu ela.”
Leia o texto com essa nova redação e, se possível, permitam que os alunos vejam o texto enquanto é lido (para isso, prepare-o antes com o recurso que você tiver disponível na escola).
Leia um ou dois parágrafos seguintes e perguntem a eles que diferença faz escrever o texto dessa forma ou como no original. A ideia é que possam perceber que:
a) contar antes tira o suspense da história e, portanto, a surpresa final;
b) contar o plano antes não é tão interessante para o leitor quando se ele ficar sabendo só quando ele for executado;
c) não seria possível conseguir tanta indignação dos moradores se eles já soubessem do plano, o que também contribui para a quebra do suspense e não prenderia tanto a atenção do leitor.
Estudo de Texto Focalizando seus Recursos Discursivos e Linguísticos.
Sapo com medo d’água
Objetivos
·      Compreender um conto de artimanha lido a partir dos elementos constitutivos da sua organização interna (ardis e truques para enganar o oponente; identificação do protagonista e do antagonista; identificação do plano do protagonista; identificação dos motivos do protagonista para ludibriar o vilão).
·      Identificar, a partir da mediação do professor, recursos linguístico-discursivos empregados em dois contos de artimanha e os efeitos de sentido que provocam.
Encaminhamentos
Leitura das duas versões do conto “Sapo com medo d’água”.
Nessa etapa, sugerimos que sejam lidas as versões do conto “Sapo com medo d’água”, de Ricardo Azevedo e Câmara Cascudo. Leia os textos em dias distintos e converse com as crianças sobre as semelhanças e diferenças entre as duas histórias, focalizando não apenas aspectos semânticos, mas discursivos e textuais.
Faça uma primeira leitura de um dos contos e converse com o grupo fazendo perguntas que ajudem a verificar se as crianças compreenderam o texto.
Estas perguntas devem remeter-se às características fundamentais de um conto de artimanha, ou sejam, devem referir-se a:
a) quem é o protagonista –personagem esperto, que vai enganar o vilão – nessa história?;
b) como você sabe disso?;
c) quem é o antagonista, o vilão?;
d) como você sabe disso?;
e) qual o plano do protagonista?;
f) ele consegue enganar o vilão?;
g) por que você acha que o protagonista quis enganar o vilão?;
h) como você sabe disso?
Em seguida, releia o conto analisando, junto com os alunos, os recursos discursivos e textuais empregados no textos e os efeitos de sentido que provocam. Considerem os comentários e as orientações apresentadas a seguir.
Comentário:
Na primeira versão, os seguintes aspectos podem ser discutidos com os alunos:
a) O título do texto – “Sapo com medo d´água” – contraria tanto o possível repertório do aluno, quanto a lógica do conto de artimanha, no qual o protagonista é sempre esperto, inteligente, ardiloso: sapo não tem medo de água; o sapo não pode ser medroso, se é o protagonista. O título, enquanto recurso textual e discursivo que supõe redução de informação semântica do texto como um todo, costuma possibilitar ao leitor antecipar sentidos do texto. Nesse caso, pode, à primeira vista, apresentar uma contradição. No entanto, sabendo-se que sapo não tem medo de água, podemos considerar que o leitor já tem – a partir desse título – uma pista sobre quem será o esperto, quem estará enganando, qual a estratégia do protagonista. Nesse sentido, o título passa a ser um recurso provocativo; explicitador da estratégia do sapo.
b) A primeira frase – “O sapo é esperto.” – embora contrarie o título, confirma a esperteza do sapo; ao mesmo tempo ativa a capacidade do leitor para estabelecer a relação entre o que ele sabe sobre o sapo, a contradição em relação ao título e quem será o protagonista do conto, considerando as características de textos desse gênero. É possível, inclusive, inferir qual será a estratégia do sapo para enganar seu antagonista.
c) organização do diálogo, foi elaborada quase sem a presença de verbos ‘discendi’ (verbos de dizer: aqueles que especificam a fala a ser apresentada em cada turno: disse, falou, respondeu, retrucou, perguntou, indagou, murmurou, entre outros); e quase sem referências à origem – ‘autor’ – da fala de cada turno. Esse recurso provoca um efeito de agilidade nas falas e, dessa forma, rapidez à ação da trama, pelo menos até a fala “Vamos botar o sapo na lagoa!”.
Depois disso – quando o final se anuncia e a estratégia está para ser concretizada -, a diferença é visível: há, por duas vezes, o anúncio completo fala do sapo7 (‘Aí osapo ficou triste começou a pedir, com voz de choro:’ e O sapo mergulhou, veio em cima da água fritando satisfeito:’); há, ainda, o apresentação da fala dos meninos, após a primeira fala do sapo (‘Vamos para a lagoa – gritaram os meninos’). É importante tematizar junto aos alunos as pistas que o texto oferece para que identifiquemos quem está falando o que.
Algumas orientações:
·      na primeira fala, a referência ao sapo como objeto da ação do nós implícito em ‘vamos’ – os meninos – indica que não é ele quem fala; a 1ª pessoa do plural (referente aos meninos) indica quem fala;
·      na segunda fala, o verbo de dizer – ‘dizia’ – e a referência à fonte – o sapo – explicitam quem fala. Além disso, há a referência a “meu couro”, que é mais coerente com o personagem sapo, e a ideia de que não adiantaria jogá-lo nos espinhos – intenção dos meninos, apresentada na fala anterior;  
·      na terceira fala, o verbo na primeira pessoa do plural – ‘vamos’ – já indica quem fala; além disso, há uma referência a ele – o sapo -, o que indica que não pode ser o sapo quem fala;
·      na quarta fala, como há uma alternância, e também pelo conteúdo semântico da fala (pois fogo pode matar sapo e, se alguém está dizendo que não, só poderia ser o sapo para salvar-se, o que é coerente com sua estratégia para enganar os meninos), fica fácil deduzir quem fala;
·      quinta fala possui as mesmas características que a terceira;
·      sexta fala é semelhante à quarta: há uma alternância de turno, e também o conteúdo semântico da fala denuncia o seu autor (pois pedra pode matar sapo e, se alguém está dizendo que não, só poderia ser o sapo para salvar-se, o que é coerente com sua estratégia para enganar os meninos);
·      na sétima fala, o verbo na 1ª pessoa do plural, identifica os falantes;
·      na oitava, vale a justificativa apresentada para a 4ª fala;
·      na nona fala, vale o exposto para a sétima.
A diferença na redação das sequências dialogais do texto – quando colocadas em comparação – provocam o efeito de sentido que confere rapidez à primeira parte – ‘bate-volta’ ‘pingue-pongue’ -, e mais lentidão à segunda;
d) O efeito de lentidão conferido à segunda parte é bastante adequado às intenções semânticas: necessidade
    de o sapo demonstrar medo para convencer mesmo os meninos de que ele deveria ser jogado na água; isso
   coloca a necessidade textual de explicar, qualificar a ação para que se tenha uma ideia mais clara da  
   dramatização/encenação realizada pelo sapo, e com sucesso.
Na segunda versão do conto “Sapo com Medo d’água” – a versão de Ricardo Azevedo – encontramos uma progressão organizada de maneira diferente e uma estratégia do protagonista também diferente.
Nela, a estratégia do protagonista é manter-se tranquilo e calado enquanto os bandidos pensam em maneiras de fazer maldades ao animal que, de fato, poderiam prejudicá-lo. Quando os antagonistas tem a ideia de jogá-lo na lagoa é que ele se põe a falar, como se fosse a pior coisa que poderiam fazer com ele. A partir desse momento – com a fala Tudo menos isso” – é que o diálogo fica rápido, com verbos de dizer escasseando progressivamente, assim como a indicação do falante.
Depois da leitura dos dois textos, oriente um trabalho de comparação entre eles, focalizando os aspectos estudados em cada um.
As perguntas a seguir podem orientar uma conversa sobre os textos:
a) quem pega o sapo e por qual razão, em cada uma das versões?;
b) quais ameaças são feitas ao sapo e como ele reage, em cada uma das versões?;
c) qual o plano do sapo em cada um dos textos?;
d) quais são os desfechos?;
d) qual plano vocês acharam mais interessante? Por que?;
e) de qual texto vocês mais gostaram? Por que?.
Ao final do estudo comparativo, aproveite para conversar com seus alunos sobre o fato de que os contos de artimanha, assim como os contos de fadas, têm suas raízes na tradição oral, ou seja, são histórias muito antigas que foram transmitidas ao longo do tempo de geração a geração. Por isso, muitas delas têm diferentes versões, pois, cada pessoa, depois de ouvir a história, conta de seu jeito.
Anexo – textos
Pedro Malasartes e o Lamaçal Colossal
Você conhece o Pedro Malasartes? Se não conhece, pode ir se preparando porque ele pode aparecer aqui a qualquer hora.
Ele não esquenta lugar, está sempre indo de um canto para outro. Fica um tempinho trabalhando numa fazenda, sai e vai para outro emprego num sítio, daí a pouco já está numa vila vendendo umas coisas na feira… Quando a gente menos espera, Pedro já está de novo na estrada, a caminho da cidade ou de outra fazenda onde possa ter uma oportunidade melhor. Muda toda hora, sempre em busca de um trabalho mais bem pago, de um patrão que trate bem, de um negócio mais interessante. Por isso, em cada história ele está fazendo alguma coisa diferente. E sempre procurando dar um jeito de se defender, garantir um prato de comida e não ser explorado. Mesmo que, para isso, acabe enganando alguém.
Acho que uma das primeiras aventuras de Pedro Malasartes foi quando ele foi tomar conta dos porcos de uma fazenda muito grande, de um fazendeiro muito rico e muito sovina.
Quer dizer, no começo Malasartes não tomava conta dos porcos, não. Trabalhava na colheita. Aliás, bem nesse começo ele ainda nem se chamava Malasartes, era só mais um Pedro como tantos outros que ainda não tinha ficado conhecido por fazer arte nem por pregar pela nos outros. Chegou lá pedindo emprego e foi contratado para colher café.
Pedro trabalhou o mês inteiro. De manhãzinha até a noite. No fim desse tempo, quando chegou o dia do pagamento, o patrão deu a ele umas moedinhas.
Só isso, patrão? E o salário que a gente combinou?
Bom, eu tive que descontar sua hospedagem… Se eu for hospedar de graça todo mundo que chega nesta fazenda colossal…
E o senhor chama de hospedagem dormir amontoado com os outros naquele barracão, numa esteira velha, direto no chão duro? – reclamou ele.
Faz até bem para a coluna…
Pedro insistiu:
·           Mas foi uma hospedagem muito cara. Eu tenho pra mim que eu não dormi esse tantão, não…
Não adiantou insistir. O desconto estava feito. E o patrão ainda apareceu com outra explicação:
·           É que tem também o desconto da comida. Se eu for dar comida de graça para todo mundo que chega nesta fazenda colossal…
·           Um descontão desses? Pela comida? Só aquele feijãozinho talo todo dia? E o senhor queria que eu passasse fome? Trabalhasse sem comer? Saco vazio não fica em pé…
·           Claro que não quero ver você com fome! Mas comida custa dinheiro – respondeu o patrão.  Tenho que descontar do seu salário o preço do feijão com arroz, do sal, da linguiça, da lenha que cozinhou a comida, do óleo, do alho e da cebola que a cozinheira usou no refogado, do salário da cozinheira, do sabão que lavou as panelas, do…
·           Chega, patrão, chega! Não precisa mais falar tanto em desconto. Mas eu tenho pra mim que eu não comi esse tantão, não…
Não adiantou discutir. O desconto estava feito.
Pedro resolveu que no mês seguinte ia ser diferente. Trabalhou do mesmo jeito, de sol a sol, mas não dormiu no barracão nem comeu com os outros. Com o pouquinho de dinheiro que tinha ganho comprou na venda sua própria esteira e dormia embaixo de uma árvore. Pescava no ribeirão, armava arapuca na mata, e no fim do dia quase sempre tinha alguma coisa para assar numa fogueira ao ar livre. Arrumava uma frutinha aqui, outra ali, pegava uma espiga de milho verde num milharal, uma raiz de mandioca numa roça, umas folhas de taioba crescendo ao deus dará junto do córrego… Quase sempre dava um jeito de não comer com os outros. Dessa vez o patrão ia ver só. Não ia adiantar vir com aquela conversa de fazenda colossal.
Mas, na hora do pagamento, não foi muito diferente. O patrão descontou um tantinho pelo aluguel do pedacinho de terra onde ele armava a esteira, outro tantinho pelo uso do rio, e outro tantinho pela espiga de milho, pela raiz de mandioca, pelas folhas da taioba, por tudo o que ele tinha comido.
Chega, patrão, chega! Não precisa falar mais em tanto desconto. Mas eu tenho pra mim que eu não usei esse tantão, não… – reclamou Pedro.
·           Se é assim, vou-me embora. Não trabalho mais aqui.
O patrão coçou a cabeça, olhou pra ele e disse:
·           Só se for no mês que vem. Porque neste mês agora vai ter que trabalhar pra mim, para poder acertar nossas contas.
·           Nossa contas? Como assim? – estranhou Pedro.  
·           É que ainda falta acertar sua conta com o armazém.
·           Que armazém? – estranhou Pedro de novo.  
·           Uai, aquela vendinha na beira da estrada. Você não sabe que é minha?
·           E eu lá tenho conta em armazém?  
·           Como não tem? E a esteira que você comprou?  
·           Comprei e paguei, com muita honra! – exclamou Pedro furioso.
·           Pagou a esteira, mas também comprou também um pedaço de fumo de rolo e uma cachacinha… Ou não lembra que comprou?
·           Comprei e também paguei, com muita honra! – exclamou Pedro, furioso!
·           Pagou a primeira… – concordou o patrão.  Mas depois pediu outra, e mais outra, e não tinha mais dinheiro para pagar. Mandou botar na conta. O vendedor anotou tudo. E agora você tem que pagar. Se eu fosse deixar de graça tudo o que todo mundo compra nessa fazenda colossal…
Pedro protestou:
·           Eu tenho pra mim que eu não bebi e não fumei esse tantão, não…
Com ar de bonzinho, o fazendeiro completou:
Mas pode deixar para pagar uma parte no mês que vem.
Pedro saiu dali muito zangado. Mão lembrava de ter bebido muitas doses de pinga. Mas até podia ser. Bem que a mãe dele dizia que isso de tomar uma cachacinha é desgraceira.
De qualquer modo, uma coisa ele estava entendendo: aquilo não ia ter fim nunca.
·           Esse fazendeiro é um explorador! Vem com essa conversinha mole de fazenda colossal, mas está querendo me tratar feito se eu fosse um escravo. Não me paga e não em deixa ir embora. Ah, mas isso não vai ficar assim. Vou dar um jeito.
No dia seguinte, procurou o patrão e se ofereceu para tomar conta dos porcos da fazenda. Esses porcos eram o grande orgulho do fazendeiro. Gordos, bonitos, rendiam um bom dinheiro… Mas comiam muito, fediam muito e bem que davam trabalho. Qualquer esforço para tomar conta deles era sempre bem-vindo.
·           Tudo bem. Então vá cuidar da lavagem deles.
Era duro. Uma espécie de trabalho de lixeiro. Pedro tinha que ir de casa em casa, por toda a fazenda, recolhendo restos de comida, cascas de frutas, alimentos estragados, todo tipo de sobra, e botando tudo nuns latões enormes e pesados, que cheiravam mal. Depois carregava baldes d’água do ribeirão, misturava tudo, jogava nos cochos e abria a porteira do cercado. Os porcos entravam correndo, derrubando uns aos outros, e se amontoavam para a comilança. No meio de uma sujeirada incrível.
Mas Pedro não desanimou. Fez tudo direitinho, no capricho. Quando acabou, perguntou ao patrão:
·           Agora posso levar os porcos para passear?
Passear? Nunca ouvi falar em porco passeando. Ficou maluco?
·           Com todo o respeito, senhor, eu sempre ouvi dizer que exercício faz bem aos animais, a carne deles rende mais e fica maciazinha… Dá um preço ótimo na hora de vender.
Os olhos do fazendeiro brilharam, e ele perguntou, interessado:
·           E como é que você vai levar esses porcos para passear?
·           Ah, patrão, numa fazenda colossal como esta, com toda a certeza não vai faltar um lugar bem especial para seus porquinhos fazerem exercícios. Eu fico tomando conta, como se fosse um pastor, um vaqueiro…
O patrão deu risada:
Um porqueiro, você quer dizer. Mas… pode levar. Só tenha cuidado para eles não se soltarem, não invadirem as roças, não darem prejuízo.
·           Pode deixar, patrão. Já vi um lugar aqui perto que tem uma laminha muito simpática. Acho que eles vão gostar bastante.
Isso foi o que Pedro disse. O que ele não disse é que passara a noite carregando água do córrego para jogar num terreno à beira da estrada, que tinha sido capinado e estava pronto para ser plantado. A noite inteira, para lá e para cá. Desse jeito, Pedro tinha preparado um lamaçal colossal. Levou os porcos diretamente para lá, sentou-se me cima de uma pilha de tábuas que também tinha deixado preparadas e esperou.
Quando apareceu ao longe um caminhão vazio ele fez sinal. O motorista parou. Pedro disse que o patrão estava numa emergência, tivera que fazer uma viagem de urgência e o encarregara de vender logo aqueles porcos, bem baratinho, para mandar dinheiro para ele. Conversa vai, conversa vem, negociou a venda de todos os animais. Com uma única condição: os rabinhos tinham que ficar.
·           É para eu poder prestar contas – explicou.  Ele saiu tão depressa que nem teve tempo de contar. Assim a gente controla exatamente quantos porcos foram vendidos.
O sujeito achou esquisito, mas concordou. Estava com pressa. Queria fechar logo o negócio, antes que surgisse um concorrente pela estrada. Ou que aquele caipira se arrependesse de vender uns animais tão bonitos por um preço tão abaixo do que eles poderiam ser revendidos no mercado. E com os olhos brilhando, enquanto fazia contas mentalmente e calculava o lucro que ia ter, o motorista do caminhão ajudou Pedro a cortar o rabo dos animais e a guardar na carroceria todos os porcos, que subiram por uma rampa improvisada com as tábuas da pilha onde ele estava sentado.
Num instante, os dois se despediram, e o caminhão sumiu na estrada. Com toda aquela porcalhada.
Pedro pôs no bolso o dinheiro da venda e disse pra si mesmo:
·      Agora estou descontando os descontos. Se eu fosse deixar de graça tudo o que tiraram de mim nessa fazenda colossal…
Depois pegou os rabinhos, que tinha deixado separados em cima das tábuas, e foi espetando todos na lama, a uma boa distância uns dos outros. Todos menos um, que ficou segurando.
Feito isso, foi para a casa da fazenda. Quando estava chegando lá perto, começou a correr e a gritar, como se tivesse vindo esbaforido o tempo todo:
·      Socorro! Acudam! Estou precisando de toda ajuda!
Foi uma correria, todo mundo em volta, e ele fingindo que estava sem fôlego, que nem conseguia falar.
·      O que foi?
·      O que está acontecendo?
E o patrão:
·      Cadê meus porcos?
Depois de muito ofegar, beber um copo d’água e fazer de conta que estava sem forças, Pedro finalmente explicou:
·      Levei os bichinhos para passear num lugar onde não tinha nada plantado, e eles descobriram um bom lamaçal. Um lamaçal colossal. Eles adoraram…
Nossa… Não dá pra curtir, propriamente. Mas dói de ler. Ah, dói… Sim, e daí? Conte logo! Onde estão meus animais?
·      Estão lá, fique sossegado…   
·      Então, pra que esse escândalo?
·      Bom, patrão, é que era um lamaçal tão colossal que eles foram se afundando aos pouquinhos.
·      Afundando? Como assim?  
·      Afundando, uai! Ficando com as pernas presas e indo para o fundo, devagarzinho. Quando eu vi, tentei segurar o que estava mais perto. Puxei, puxei, mas não adiantou nada. Olha só! O rabo dele ficou na minha mão, e o coitadinho foi sumindo…
E mostrou o rabinho que guardara.
Foi um espanto! Todo mundo queria ver. O rabo, todo enroladinho, passava de mão em mão. Pedro continuou:
·      Eu então vi que não dava conta sozinho e vim correndo pedir ajuda.
Vamos todos para lá! – ordenou o fazendeiro.
É isso mesmo – concordou Pedro.  Mas é muito porco, nem sei se vai dar. Se o senhor me der licença, eu posso também fazer outra coisa para ajudar.
·      O quê?  
·      Se o senhor me autorizar, eu posso selar uma mula e ir até o vizinho pedir reforço. Ele tem um trator bom, a gente pode amarrar umas cordas fortes nos bichos… Fica mais fácil puxar.
·      Boa ideia! – concordou o patrão.  Mas não vai perder tempo selando mula, não. Monte logo no meu cavalo, que é veloz e já está arreado. Assim vai mais ligeiro.
Era isso mesmo que Pedro queria.
Num instante já estava longe, na direção oposta à do lamaçal colossal. A cavalo e com dinheiro no bolso.
E o patrão, se não estiver esperando reforço até hoje, já deve estar com uma boa coleção de rabinhos de porco na mão. Ou ele estava pensando que ia continuar para sempre explorando todo mundo, sem nunca lhe acontecer nada, naquela fazenda colossal?
A Velhinha Inteligente
Esta é uma história que se conta até hoje na cidade de Carcassonne, ao sul da França. Há várias versões do mesmo caso, mas todas concordam num ponto: a cidade foi salva graças à esperteza de uma mulher.
Há muitos e muitos séculos, a próspera cidade de Carcassonne foi cercada por guerreiros inimigos. Embora protegida por muralhas e portões, a população não estava a salvo: como ninguém pudesse sair, aos poucos a comida foi escasseando. Logo chegou o dia em que ninguém mais tinha o que comer, e os inimigos, do lado de fora, resistiam teimosamente, esperando a rendição da cidade.
Então, o governador de Carcassonne, refletindo sobre a gravidade da situação, resolveu que era preferível entregar-se a ver seu povo morrer de fome. Entretanto, assim que ele anunciou a todos a sua resolução, uma senhora, madame Carcas, já bem idosa e por isso mesmo muito experiente, adiantou-se e disse que tinha um plano para salvar a cidade.
·         Todos riram dela, porém como já se consideravam perdidos, acharam que não faria mal escutá-la.
·         Primeiro, tragam-me uma vaca – pediu ela.
·         Uma vaca?!? – exclamaram. – E como vamos achar uma vaca?
Mas madame Carcas insistiu e todos se puseram a procurar de casa em  casa.
Vira daqui, revira de lá, encontraram, por fim, uma vaca muito magra, na casa de um avarento, que a havia escondido por medo de morrer de fome. Ele bem que reclamou, mas o animal foi levado até a velha senhora.
·           Agora – disse ela – juntem tudo o que puderem de alimentos, restos, cascas, o que encontrarem!
Assim fizeram todos, conseguindo juntar um saco cheio de restos de cereais.
·           Muito bem – aprovou a madame. – Deem tudo isso à vaca!
·           À vaca?!? Isso é um absurdo! Todos nós temos fome!
·           Pois deem tudo à vaca e não vão se arrepender – garantiu a velhinha.
Não sem relutar, fizeram o que ela dizia. A vaca rapidamente engoliu aquilo que para todos parecia um banquete desperdiçado.
·           Agora, abram com cuidado os portões e deixem a vaca sair – ordenou a senhora.  
·           Essa velha é louca! – gritaram alguns. Mas como madame insistisse com tanta segurança, resolveram obedecer-lhe até o fim.
Do lado de fora, a tropa inimiga percebeu que os portões da cidade se abriram.
Intrigados, viram que uma vaca escapava. Mais do que depressa, capturaram o animal e o levaram para seu chefe de armas.
·           Veja, senhor, eles deixaram uma vaca escapar! Graças a esse descuido, hoje teremos um bom jantar!
O chefe, intrigado, ordenou que matassem a vaca. Mas, quando abriram a barriga do animal e ele a viu forrada de cereais, muito preocupado, concluiu:
·           Soldados! Se os habitantes dessa cidade ainda têm tantas provisões que podem alimentar suas vacas e além disso se dar ao luxo de deixá-las escapar, é sinal de que poderão resistir ainda por muito tempo. É melhor nos retirarmos, pois certamente morreremos de fome antes deles.
Assim, os inimigos foram embora e a cidade foi salva.
Dizem que a velhinha, vendo partir os soldados, subiu à torre da igreja e começou a tocar o sino, em sinal de vitória. Ouvindo aquilo, o povo gritou:
·           Viva! Carcas sonne! – que em francês quer dizer “Carcas está tocando o sino”.
É por isso que a cidade foi chamada de CARCASSONNE.
(PAMPLONA, Rosana. Novas Histórias Antigas. São Paulo (SP): Brinque-book, 1998; pp.23-26)
Sapo com Medo de Água (versão 1)
O sapo é esperto. Uma feita o homem agarrou o sapo e levou-o para seus filhos brincarem. Os meninos judiaram dele muito tempo e, quando se fartaram, resolveram matar o sapo. Como haviam de fazer?
–        Vamos jogar o sapo nos espinhos!
–        Espinhos não furam o meu couro – dizia o sapo.
–        Vamos queimar o sapo!  
–        Eu no fogo estou em casa!  Vamos sacudir ele nas pedras!
–        Pedra não mata sapo!
–        Vamos furar de faca!
–        Faca não atravessa!
–        Vamos botar o sapo na lagoa!
Aí o sapo ficou triste e começou a pedir, com voz de choro:
–        Me bote no fogo! Me bote no fogo! Na água eu me afogo! Na água eu me afogo!
–        Vamos para a lagoa – gritaram os meninos.
Foram, pegaram o sapo por uma perna e, fxirn bum, rebolaram lá no meio. O sapo mergulhou, veio em cima da água fritando satisfeito:
–          Eu sou bicho d’água! Eu sou bicho d’água!
Por isso quando vemos alguém recusar o que mais gosta, dizemos:
–                    É sapo com medo de água…
–                     
(CASCUDO, Luis da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo: Global, 2004; . São Paulo: Global, 2004;p.196.)
Sapo com Medo D´Água (versão 2)
Dois homens, fugidos da prisão, pararam na beira da lagoa para matar a sede e descansar um pouco.
Um sapo dormia debaixo da samambaia.
Os bandidos agarraram o sapo.
–        Olha que desengonçado! – disse um deles, apertando o bicho entre os dedos.
–        É feio que dói! – completou o outro, com cara de nojo.
E os dois resolveram fazer maldade.
–        Vamos jogar no formigueiro?
Ouvindo isso, o sapo estremeceu. Por dentro. Por fora, abriu um sorriso indiferente.
–        Que nada – respondeu o outro, percebendo que o sapo não estava nem ligando. – Pega a faca. Vamos picar ele todinho.
O sapo, de olhos fechados, começou a assobiar uma linda melodia.
Os dois bandidos queriam dar um jeito de fazer o sapo sofrer.
–        Sobe na árvore e atira ele lá do alto.
–        Pega o fósforo e acende uma fogueira. Vamos fazer churrasco de sapo!
O sapo espreguiçava-se tranquilo entre os dedos do homem.
Um dos bandidos teve outra ideia.
–        Já sei! Vamos afogar o desgraçado na lagoa!
Foi quando o sapo deu um pulo desesperado e começou a gritar:
–        Tudo menos isso!
Os malfeitores, agora sim, tinham chegado onde queriam.
–        Vai pra água, sim senhor!
–        Não sei nadar! – berrava o sapo.
–        Então vai morrer engasgado!
O bicho esperneava:
–        Socorro!
–        Vai sufocar de tanto engolir água!
–        Não!
–        Vai virar comida de jacaré!
–        Tenho mulher e filhos pra cuidar!
–        Joga bem longe!
–        Me acudam!
–        Lá vai!
O homem atirou o sapo no fundo da lagoa. O sol estava redondo.
O sapo – ploft – desapareceu no azul bonito das águas.
Depois voltou risonho, mostrou a língua e foi embora nadando e cantando e dançando e requebrando n’água, feliz da vida.
(AZEVEDO, Ricardo. Meu livro de folclore. São Paulo (SP): Ática, 2006; p.5-8.)
O Sapo e o Coelho
O Coelho vivia zombando do Sapo. Achava-o preguiçoso e lerdo, incapaz de qualquer agilidade. O sapo ficou zangado:
–        Quer apostar corrida comigo?
–        Com você? – assombrou-se o coelho.
–        Justamente! Vamos correr amanhã, você na estrada e eu pelo mato, até a beira do rio…
O coelho riu muito e aceitou o desafio. O sapo reuniu todos os seus parentes e distribuiu-os na margem do caminho, com ordem de responder aos gritos do coelho.
Na manhã seguinte os dois enfileiraram-se e o coelho disparou como um raio, perdendo de vista o sapo que saíra aos pulos. Correu, correu, correu, parou e perguntou:
–        Camarada Sapo?
Outro sapo respondia dentro do mato:
–        Oi?
O coelho recomeçou a correr. Quando julgou que seu adversário estivesse bem longe, gritou:
–        Camarada Sapo?
–        Oi? – coaxava um sapo
Debalde o coelho corria e perguntava, sempre ouvindo o sinal dos sapos escondidos. Chegou à margem do rio exausto mas já encontrou o sapo, sossegado e sereno, esperando-o. O coelho declarou-se vencido.
(CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo (SP): Global, 2004; p.186.)
A Dona Raposa e os Peixes
Um dia, bem cedinho, seu Raposa andava pelo bosque. Ao passar perto de um rio, viu uma quantidade enorme de peixes nadando. Entusiasmado, ele começou a pescar. Eram tantos os peixes, e seu Raposo estava tão esfomeado, que em pouquíssimo tempo pescou três lindas traíras.
Muito alegre, foi para casa e disse à mulher, ao chegar:
–        Dona Raposinha, olhe só a sorte que tive hoje!
–        Oh! Que traíras enormes! – exclamou dona Raposa, já com água na boca.
–        Pois é. Eu como uma, você outra e ainda vai sobrar uma… Por isso, eu pensei em convidar seu Tigre para almoçar; é sempre bom agradá-lo…
–        Você é quem manda, querido Raposo. Vou fritar com muito cuidado essas traíras. Vão ficar deliciosas! Ande, vá convidar seu Tigre!
Seu raposo esfregou as mãos satisfeito e saiu em busca de seu Tigre. Dona Raposa se pôs a preparar os peixes. Quando ficaram bem fritos, o cheiro era tão apetitoso que ela murmurou:
–        Vou experimentar minha traíra para ver se ela ficou boa de sal. Só um pedacinho de nada, pois ia ser bem chato se eu a comesse inteira antes de seu Raposo chegar com o convidado!
Ela começou a beliscar o peixe e achou-o tão saboroso que se esqueceu do que havia dito. Em poucos segundos o prato ficou limpo.
–        Estava deliciosa! Agora preciso experimentar a do Raposo; ele é muito delicado e, se sua traíra não estiver bem frita, com certeza vai ficar zangado!
Comeu a cauda torrada, depois uma das barbatanas, a seguir a cabeça e, quando percebeu, toda a traíra de seu Raposo havia desaparecido.
–        Meu Deus, comi inteirinha! – ela exclamou.
 – Mas, agora, o estrago está feito. Então não faz mais diferença se eu comer também a última!
E, do mesmo jeito, comeu a última traíra.
Por fim, chegou seu Raposo, acompanhado de seu Tigre, e perguntou à mulher:
–        Preparou as traíras?
–        Claro que sim! Ainda estão no fogo para que não esfriem – ela mentiu.
–        Sirva logo, porque estamos com muito apetite. Não é verdade, seu Tigre?
–        Sem dúvida, seu Raposo. Eu, pelo menos… E com esse cheirinho de peixe frito que há por aqui…
–        Vou pôr à mesa – disse dona Raposa. – Sente-se ali, seu Tigre. Aquele é o seu lugar.
–        Obrigado, dona Raposa.
Seu Tigre sentou-se e Dona Raposa chamou o marido de lado.
–        Vá até o quintal e afie bem as facas, pois as traíras eram muito velhas e ficaram duras demais – ela falou.
Seu raposo correu até o quintal, e dali a pouco podia-se ouvir o barulho que faziam as facas contra a pedra de amolar.
Dona Raposa se aproximou de seu Tigre e lhe disse:
–        Você está ouvindo? É meu marido que está amolando uma faca. Ficou louco e meteu na cabeça que quer comer suas orelhas, seu Tigre; para isso é que ele trouxe você até aqui. Fuja logo, antes que ele volte, por favor!
Seu Tigre se assustou e saiu da casa a todo vapor.
Então, dona Raposa começou a gritar:
–        Seu Raposo, seu Raposo! Venha logo, que seu Tigre fugiu levando todas as traíras!
E seu Raposo, com uma faca em cada mão, começou a correr atrás de seu Tigre, gritando:
–        Seu Tigre, seu Tigrinho! Me dê pelo menos uma!
E o Tigre, achando que seu Raposo se referia às suas orelhas, apertou o passo, morrendo de medo, e não parou até estar bem fechado e seguro em sua casa.
(Conto Tradicional Venezuelano – Contos de Artimanhas e Travessuras. Co-edição latino-americana. Editora Ática. 1988. São Paulo.)
De como o Malasartes fez o Urubu falar
Quando o pai de Pedro Malasartes entregou a alma a Deus, fez-se a partilha dos bens, uma casinha velha, entre os filhos, e tocou a Pedro uma das bandeiras da porta da casa, com o que ele ficou muito contente.
Pôs a porta no ombro e saiu pelo mundo. Em caminho, viu um bando de urubus sobre um burro morto. Atirou a porta sobre eles e caçou um urubu que ficou com a perna quebrada.
Apanhou-o, pôs a porta às costas e continuou viagem.
Obra de uma légua ou mais, avistou uma casa de onde saía fumaça, o que queria dizer que se estava preparando o jantar.
Pedro Malasartes, que sentia fome, bateu à porta e pediu de comer.
Veio antendê-lo uma preta lambisgóia que foi logo dizer à patroa que ali estava um vagabundo, com um urubu e uma porta, a pedir de jantar.
A mulher mandou que o despachasse – que a sua casa não era coito de malandros.
O marido estava de viagem e a mulher no seu bem bom a preparar um banquete para quem ela muito bem o destinava. Neste mundo há coisas!
Pedro Malasartes, tão mal recebido que foi, resolveu subir para o telhado, valendo-se da porta que trazia e lhe serviria de escada. Subiu e ficou espreitando o que se passava naquela casa, tanto mais que sentia o cheiro dos bons petiscos.
Espiando pelos vãos das telhas viu os preparativos e tomou nota das iguarias, e ouviu as conversas e confidências da patroa e da negra.
Justamente na hora do jantar chegou o dono da casa que resolveu voltar de inesperado da viagem que fazia.
Quando a mulher percebeu que ele se aproximava mandou esconder os pratos do banquete e veio recebê-lo e abraçá-lo, muito fingida, muito risonha, mas por dentro queimando de raiva.
Vai daí mandou pôr na mesa a janta que constava de feijão aguado, paçoca de carne seca e cobu, dizendo:
–        Por que não avisou, marido? Sempre se havia de aprontar mais alguma coisa…
Sentaram-se à mesa.
Pedro Malasartes desceu de seu posto e bateu na porta, trazendo o urubu.
O dono da casa levantou-se e foi ver quem era.
O rapaz pediu-lhe um prato de comida e ele chamou-o para a mesa a servir-se do pouco que havia.
A mulher estava desesperada, desconfiando com a volta de Malasartes.
Pedro tomou assento, puxou o urubu para debaixo da mesa, preso pelo pé num pedaço de corda de pita.
Estavam os dois homens conversando, quando de repente o Malasartes pisou no pé quebrado do bicho e este se pôs a gritar: uh! uh! uh!
O dono da casa levou um susto e perguntou que diabo teria o bicho.
Pedro respondeu muito sério:
–        Nada! São coisas. Está falando comigo.
–        Falando! Pois o seu bicho fala?!
–        Sim, senhor, nós nos entendemos. Não vê como o trago sempre comigo? É um bicho mágico, mas muito intrometido.
–        Como assim?
–        Agora, por exemplo, está dizendo que a patroa teve um aviso oculto da volta do senhor e por isso lhe preparou uma boa surpresa.
–        Uma surpresa! Conte lá isso como é.
–        É deveras! Uma excelente leitoa assada que está ali naquele armário…
–        Pois é possível! Ó mulher, é verdade o que diz o urubu desse moço?
Ela com receio de ser apanhada com todo o banquete e certa de que Pedro sabia da marosca, apressou-se em responder:
–        Pois então? Pura verdade. O bicho adivinhou. Queria fazer-te a surpresa no fim do jantar.
E gritou pela preta:
–        Maria, traz a leitoa.
A negra veio logo correndo, mas de má cara, com a leitoa assada na travessa.
Daí a pouco, Pedro Malasartes pisou outra vez no pé do urubu que soltou novo grito.
–        O que é que ele está dizendo?
–        Bicho intrometido! Está candongando outra vez. Cala a boca, bicho!
–        O que é?
–        Outras supresas.
–        Outras?!
–        Sim, senhor: um peru recheado…
–        É verdade, mulher?
–        Uma surpresa, maridinho do coração. Maria, traz o peru recheado que preparei para o teu amo.
Veio o peru. E pelo mesmo expediente conseguiu Pedro Malasartes que viessem para a mesa todas as iguarias, doces e bebidas que havia em casa.
Ao fim do jantar, o dono da casa, encantado com as proezas do urubu, propôs comprá-lo a Pedro Malasartes, que o vendeu muito bem vendido, enquanto a mulher e a preta bufavam de raiva, crentes também, no poder mágico do bicho que, assim, seria um constante espião de tudo quanto fizessem.
Fechado o negócio, Pedro Malasartes partiu satisfeito e vingado.
(Lindolfo Gomes. Contos populares. São Paulo, Companhia Melhoramentos, v. 1. In APOCALYPSE, Mary (org.). Publicado no site Estórias e lendas de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro: http://www.jangadabrasil.com.br/janeiro/cd50100c.htm#apocalypse)
Referências para leitura
CASCUDO, Luís da Câmara. Contos Tradicionais do Brasil. São Paulo(SP): Global, 2004.
MACHADO, Ana Maria. Jabuti Sabido e Macaco Metido. Rio de Janeiro(RJ): Objetiva; 2011(faz parte do acervo do PNLD 2013, 2014, 2015).
PAMPLONA, Rosana. Novas Histórias Antigas. São Paulo(SP): Brinque-Book, 1998.
VASQUEZ, Adolfo Sanchez. ÉticaRio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
VÁRIOS AUTORES. Contos Populares para Crianças da América Latina. Coedição latino-americana. São Paulo(SP): Editora Ática, 1994.

[1] Formadoras do Programa “Ler e Escrever”  Kátia Lomba Bräkling (Supervisora de Língua Portuguesa). Julho de 2014. CEFAI
[2] O conto “A Velhinha Inteligente”, por exemplo, apresentado a seguir, refere-se à cidade de Carcassonne, localizada no sul da França (PAMPLONA, Rosana. Novas Histórias Antigas. São Paulo: Brinque-book.). Contos de Esperteza[1]
Fragmento do projeto produção de final de contos de  esperteza
 Arte e manha na escrita de autoria
Contos de artimanha: narrativas, geralmente curtas, nas quais os personagens – humanos ou animais – utilizam-se de ardis (armadilhas ou disfarces), truques, malandragens, gambiarras e espertezas para garantir sua sobrevivência ou mesmo a vitória contra forças maiores que a sua.
Em tais contos – de artimanha; ou de manhas e artimanhas; ou de astúcia, ou ainda, de esperteza, como costumam ser denominados – a trama é sempre organizada em torno de um personagem que utiliza a esperteza para obter o que deseja, ludibriando outro – ou outros – personagem ingênuo ou, pelo menos, não tão esperto como o protagonista. Dessa maneira, os ardis são sempre inesperados e engenhosos, nunca havendo uso de estratégias usuais e previsíveis.
Estes protagonistas – que podem ser pessoas ou animais – acabam por representar a possibilidade de ludibriar certos valores da sociedade que os segrega ou exclui, valores estes sintetizados na figura de seu antagonista. Assim, podem ser personagens que sofrem pela pobreza, o que lhes acarreta ausência de dinheiro, de comida e bens materiais; podem sofrer por problemas que se realizam no interior da família (ou de um casal, como a traição) que desafiam astuciosamente os valores morais vigentes; podem, ainda, ser alvo do autoritarismo de representantes de classes sociais hierarquicamente superiores.
(…) Os contos de artimanha são comumente organizados no eixo temporal, quer dizer, as ações narradas são apresentadas em uma ordem e sequência de tempo claramente indicadas. O tempo da narrativa costuma ser indefinido, mas o local pode ser especificado em alguns textos, já que se referem à tradição oral e, dessa forma, a sua origem histórica pode remeter a uma região específica[2]. As relações de causalidade marcam a progressão temática no que se refere à relação  existente entre os motivos do protagonista, a estratégia que desenvolve para resolver o problema colocado a ele e às consequências/resultados do plano executado.
Nestes contos não há a presença do elemento mágico típico dos contos de fadas e de encantamento: a astúcia do protagonista o substitui. Tampouco há príncipes, reis e princesas: sendo assim, quando acontece a resolução do problema por meio do casamento, este acontece com a filha do patrão, por exemplo.
Do ponto de vista especificamente textual, a artimanha do protagonista costuma ser apresentada ao leitor – e comumente também aos seus antagonistas – no momento em que está sendo desenvolvida na história, e não de maneira antecipada. Quer dizer: em tais textos, não é usual que haja antecipação do plano do personagem esperto ao leitor; ao contrário, este toma conhecimento do plano na medida em que está sendo posto em ação, o que coloca suspense no texto, quase sempre surpreendendo, ao final, tanto personagens quanto leitores.
IMPORTANTE SABER
·      Nos contos de artimanha a trama é conduzida sob a ótica de um herói malandro que troça de ricos, poderosos, de instituições, mas também de indivíduos comuns cujo comportamento destoa de um padrão convencional.
Na trama, o protagonista costuma agir: a) para melhorar a sua situação ou a situação de um aliado, procurando obter recompensa, ou então explorando uma situação que possa lhe render algum benefício material; b) para proteger-se de uma ameaça ou agressão, vinda de alguém que o subestima, e/ou explora ou a um aliado; c) punir um oponente, vingando-se dele.
Como ficam esses aspectos quando se trata de contos que envolvem apenas animais?
Nesse caso, a esperteza e a astúcia são as únicas armas de que o animal de porte pequeno dispõe – com possibilidade de vitória – para enfrentar o inimigo mais forte. O antagonista é representado, portanto, por aquele que é superior ao esperto em relação à força física e tamanho. Isso se justifica considerando que na lógica da natureza, sobrevive quem é mais forte. O conto de esperteza mostra a possibilidade de subverter essa lógica por meio da esperteza
·      Na fábula, os animais representam as virtudes e defeitos humanos, segundo a visão do homem. Este é o critério de seleção dos mesmos para a composição da trama. Por exemplo: a raposa costuma representar a astúcia; o coelho, a rapidez, agilidade; o macaco, traquinagem e esperteza; a cegonha, a pureza, maternidade, bondade.
A finalidade da fábula é mostrar ao homem a sua condição e regras morais que deveria respeitar. Assim sendo, a característica de cada animal é apenas servir ao propósito de ensinar ao homem por meio de uma comparação.
As relações estabelecidas entre os animais das fábulas são, portanto, diferentes daquela estabelecida no conto de artimanha: nestes, o que vale é a possibilidade de subverter uma relação de predador-presa; uma ideia de que o maior e mais forte fisicamente sobrevive pela seleção natural. Nas fábulas isso não se coloca.
Conhecendo  um conto e seu personagem principal
Pedro Malasartes e o Lamaçal Colossal
Objetivo:
·      Conhecer um conto de artimanha e familiarizar-se com algumas das características desse tipo de conto.
Encaminhamentos:
Leitura de um conto de artimanha pela professora
Avise aos alunos que você lerá um conto de artimanha, chamado “Pedro Malasartes e o Lamaçal Colossal”, do livro “Histórias à Brasileira”. Antes da leitura, pergunte à classe:
·      Vocês já ouviram falar em contos de artimanha?
·      Que tipo de conto pode ser esse?
·      Será que a palavra artimanha pode ajudar a entender do que se trata?
Discuta as respostas, procurando referenciar-se, sobretudo, na palavra artimanha, discutindo seu significado, comparando com sinônimos, por exemplo.
Leia o texto todo. Após a leitura proponha uma discussão sobre o texto lido, fazendo perguntas como:
·      Vocês já conheciam histórias parecidas com essa?
·      Já tinham ouvido falar do Pedro Malasartes?
·      Por que será que esse conto pode ser chamado de conto de artimanha?
AMPLIANDO INFORMAÇÕES
Pedro Malasartes
De acordo com o pesquisador da cultura nacional Luís Câmara Cascudo, “Pedro Malasartes [ou Malazartes] é figura tradicional nos contos populares da Península Ibérica, como exemplo de burlão invencível, astucioso, cínico, inesgotável de expedientes e de enganos, sem escrúpulos e sem remorsos.”
A menção mais antiga feita ao personagem é na cantiga 1132 do Cancioneiro da Vaticana, datado do século XIII e XIV:
“chegou Payo de Maas Artes com seu cerame de chartes… semelha-me busuardo viindo en ceramen pardo… log’ouve manto e tabardo”.
Há informações de que até mesmo o grande romancista, dramaturgo e poeta espanhol Miguel de Cervantes Saavedra, escreveu sobre este ícone em sua comédia PEDRO DE URDEMALAS, que compõe o livro Ocho comedias y ocho entremeses nuevos (1615).
Outras versões deste personagem surgem em várias regiões da Europa, como Pedro Urdemales em Castela, Till Eulenspiegel na Alemanha e Pedro de Urdes Lamas na Andaluzia.
Duas óperas brasileiras tem o personagem por protagonista: Malazarte de Oscar Lorenzo Fernández e Graça Aranha, e Pedro Malazarte, de Mozart Camargo Guarnieri e Mário de Andrade.
Na literatura, vários autores usaram o personagem e nos cinemas o ele tomou corpo com As Aventuras de Pedro Malasartes, de 1960, com Mazzaropi no papel principal.”
Fontes: http://www.ebc.com.br; Cancioneiro da Vaticana, Biblioteca Digital do Alentejo, p. 281;
Leitura Compartilhada e Análise do Conto de Artimanha “A Velhinha Inteligente”
Objetivo
·      Ampliar – e aprofundar – conhecimentos sobre a linguagem e os recursos discursivos presentes nos textos apresentados para leitura.
Encaminhamentos
Estudo do conto junto à classe.
Retome o conto do Pedro Malazarte, lido na aula  anterior, e faça uma nova leitura com a classe, com o objetivo de que todos recuperem a história.
Entregue o texto A Velhinha Inteligente para os alunos. Leia-o enquanto eles acompanham. No final, comece, então, o estudo do texto a partir de questões orientadoras. A intenção, nesse momento, é aprofundar a compreensão dos alunos e, ao mesmo tempo, estudar os recursos discursivos e linguísticos nele apresentados.
Entregue o texto para os alunos.
Para o estudo do conto “A Velhinha Inteligente”, sugerimos as seguintes questões:
Essa é uma história criada por um autor ou que vem sendo contada de boca em boca, ao longo do tempo. 
1)      Como é possível saber isso?
2)      Onde encontramos pistas no texto a esse respeito?
Comentários:
Na discussão com os alunos, oriente para que procurem no texto o trecho que contém pistas sobre a resposta. Nesse caso, o primeiro parágrafo já indica que a história é antiga, conhecida de todos, e que vem se modificando ao longo do tempo.
É importante remeter o aluno à fonte – caso eles não recorram a ela espontaneamente – para problematizar dois aspectos:
·      o primeiro refere-se à presença da autoria que, nesse caso, relaciona-se com a reescrita, a elaboração de uma nova versão da história pelo escritor indicado;
·      o segundo aspecto refere-se ao título da obra – Novas Histórias Antigas – que ratifica a ideia de que são histórias que já existem há muito tempo e que estão sendo recontadas pela autora.
3)      Em qual trecho inicial o leitor já tem uma pista de que pode se tratar de um conto de artimanha?
Comentários:
Pretende-se que os alunos recuperem uma das características fundamentais do conto de artimanha, que é a presença de um protagonista esperto, engenhoso.
Logo no primeiro parágrafo há uma pista a respeito, quando se diz que “a cidade foi salva graças à esperteza de uma mulher”.
4)      É possível saber no início do conto qual era o plano da madame Carcas para salvar a cidade dos guerreiros inimigos?
Comentários:
Esta pergunta remete à uma estratégia discursiva e textual dos contos de artimanha que é a de não apresentar previamente o “plano” do protagonista para o leitor e demais personagens da história. Nestes contos, o estratagema do protagonista vai sendo conhecido na medida em que vai sendo desenvolvido. Isto provoca um suspense durante a narrativa e um final inusitado, não esperado, que surpreende a todos, resultado do ardil, da esperteza e da inteligência do protagonista.
Nesse sentido, espera-se que os alunos percebam que – no texto – o plano não é anunciado e depois executado; ao contrário, ele só vai sendo conhecido quando posto em prática, aos poucos. A madame Carcas não conta à população da cidade o que vai fazer. Apenas vai dando ordens a todos, para providenciarem isso e aquilo. Só ao final é que se pode ter uma ideia de tudo o que ela engendrou para conseguir vencer o inimigo.
Para responder a esta questão, os alunos precisarão ir identificando o modo pelo qual ficam sabendo – ao ler o texto – do plano da senhora Carcas. Isso remete à localização de informações em diferentes trechos do texto, e à articulação de todos eles para a totalização do plano, em si. Os diferentes trechos seriam relativos aos pedidos que a madame vai fazendo à população, os quais são fundamentados no conhecimento que ela tem dos moradores da cidade – já que ela é uma velhinha, ou seja, antiga moradora e, dessa forma, conhecedora da população – e, além disso, no seu intento: enganar os inimigos, conhecendo também seu ponto fraco.
Para responder a questão é preciso, antes de qualquer coisa, identificar o plano, o que remete à articulação das informações dos trechos e elaboração da ideia totalizadora do plano. Dito em outras palavras, só se compreende qual é o plano no final do texto, e não antes, depois de todas as etapas executadas.
Sintetizando: o plano da Madame Carcas era induzir o inimigo a ir embora, fazendo-o acreditar que a cidade tinha condições de resistir muito tempo, mais do que eles, pois tinham alimentação suficiente para continuar resistindo ao cerco. Como ela faz isso? Mostrando aos soldados que tinham muitas provisões, o que é conseguido com a “fuga” da vaca. Na verdade, Madame Carcas antecipa a reação dos soldados, que estavam morrendo de fome: se a cidade deixasse “escapar” a vaca, bem alimentada, certamente os soldados a matariam para comer. Ao fazerem isso, veriam como estava bem alimentada. Concluiriam que a população tinha muitas provisões e, dessa forma, poderiam resistir ao cerco por muito mais tempo que eles.
d) Por que todos acham um absurdo os pedidos que a Madame Carcas vai fazendo durante a história?
Comentários:
Para responder a essa questão os alunos precisarão analisar a reação dos moradores dentro da situação em que se encontravam: sitiados e com fome, por causa da escassez de alimentos. Os pedidos da Madame Carcas estavam levando a população a abrir mão dos últimos alimentos que tinham à disposição, o que – aparentemente – a colocava em desvantagem em relação ao inimigo.
Nessa questão é importante que sejam analisados cada pedido feito e de que modo se relacionam com o plano urdido pela protagonista. Além disso, é preciso levar em conta quem era ela: uma antiga moradora que, dessa forma, conhecia muito bem todo mundo. Esse fato, por exemplo, possibilitou que ela inferisse que o avarento da cidade tivesse escondido uma vaca na sua casa.
É importante articular a discussão dessa questão com o estudo feito na questão anterior.
e) Por que o plano de Madame Carcas dá certo?
Comentários:
Articule essa discussão com a das duas questões anteriores. Focalize que o plano dá certo por vários motivos:
1)      a velha senhora conhece as condições em que o inimigo está (com fome, também, e sem provisões);
2)      ela sabe que a saída é fazer com que os soldados desistam do cerco, pois a cidade não resistiria por muito tempo;
3)      Madame Carcas antecipa uma razão que poderia levar os soldados à desistência: imaginar que a cidade está mais forte;
4)      a velha senhora conhece muito bem a população, e sabe, inclusive que há um avarento que, provavelmente, estaria escondendo uma vaca na sua casa;
5)      Madame Carcas consegue antecipar a reação dos soldados e a conclusão a que chegaria o chefe deles.
f) Algumas palavras e expressões usadas no texto indicam que ela tinha muita certeza que seu plano daria
   certo. Quais são elas?
Comentários:
Nesta questão pretende-se que os alunos estejam atentos para os recursos linguísticos empregados no texto, as palavras selecionadas para indicar a certeza da senhora. Isso é fundamental no texto porque ratifica uma característica da protagonista: ser inteligente e saber muito bem o que estava fazendo.
g) De que forma o plano de Madame Carcas é revelado no texto?
Comentários:
A intenção, com essa pergunta, é deslizar da discussão do conteúdo semântico, em si, para a estratégia textual. Ou seja, é focalizar que o plano não foi apresentado para o leitor primeiro para, depois, fosse mostrado de que maneira foi desenvolvido e executado na cidade, junto à população.
Nesse momento, é possível que você apresente para os alunos uma alternativa de redação, caso a estratégia textual não seja observável para eles.
A alternativa poderia ser a seguinte: pegue o conto lido e, depois do 4º parágrafo, que termina com “não faria mal escutá-la”, introduzam o seguinte trecho:
“A velha senhora, então, revelou à população o que pretendia fazer:
Precisamos enganar os soldados fazendo com que eles pensem que podemos resistir mais do que eles. Vamos fazer com que pensem que temos provisões de sobra e que eles não aguentarão tanto tempo quanto nós. Meu plano, então, é o seguinte: pegamos uma vaca, damos de comer a ela com os alimentos que nos restam e deixamos que ela “escape” da cidade. Eles, famintos como estão, certamente vão tentar comer a vaca… Então, primeiro, tragam-me uma vaca – pediu ela.”
Leia o texto com essa nova redação e, se possível, permitam que os alunos vejam o texto enquanto é lido (para isso, prepare-o antes com o recurso que você tiver disponível na escola).
Leia um ou dois parágrafos seguintes e perguntem a eles que diferença faz escrever o texto dessa forma ou como no original. A ideia é que possam perceber que:
a) contar antes tira o suspense da história e, portanto, a surpresa final;
b) contar o plano antes não é tão interessante para o leitor quando se ele ficar sabendo só quando ele for executado;
c) não seria possível conseguir tanta indignação dos moradores se eles já soubessem do plano, o que também contribui para a quebra do suspense e não prenderia tanto a atenção do leitor.
Estudo de Texto Focalizando seus Recursos Discursivos e Linguísticos.
Sapo com medo d’água
Objetivos
·      Compreender um conto de artimanha lido a partir dos elementos constitutivos da sua organização interna (ardis e truques para enganar o oponente; identificação do protagonista e do antagonista; identificação do plano do protagonista; identificação dos motivos do protagonista para ludibriar o vilão).
·      Identificar, a partir da mediação do professor, recursos linguístico-discursivos empregados em dois contos de artimanha e os efeitos de sentido que provocam.
Encaminhamentos
Leitura das duas versões do conto “Sapo com medo d’água”.
Nessa etapa, sugerimos que sejam lidas as versões do conto “Sapo com medo d’água”, de Ricardo Azevedo e Câmara Cascudo. Leia os textos em dias distintos e converse com as crianças sobre as semelhanças e diferenças entre as duas histórias, focalizando não apenas aspectos semânticos, mas discursivos e textuais.
Faça uma primeira leitura de um dos contos e converse com o grupo fazendo perguntas que ajudem a verificar se as crianças compreenderam o texto.
Estas perguntas devem remeter-se às características fundamentais de um conto de artimanha, ou sejam, devem referir-se a:
a) quem é o protagonista –personagem esperto, que vai enganar o vilão – nessa história?;
b) como você sabe disso?;
c) quem é o antagonista, o vilão?;
d) como você sabe disso?;
e) qual o plano do protagonista?;
f) ele consegue enganar o vilão?;
g) por que você acha que o protagonista quis enganar o vilão?;
h) como você sabe disso?
Em seguida, releia o conto analisando, junto com os alunos, os recursos discursivos e textuais empregados no textos e os efeitos de sentido que provocam. Considerem os comentários e as orientações apresentadas a seguir.
Comentário:
Na primeira versão, os seguintes aspectos podem ser discutidos com os alunos:
a) O título do texto – “Sapo com medo d´água” – contraria tanto o possível repertório do aluno, quanto a lógica do conto de artimanha, no qual o protagonista é sempre esperto, inteligente, ardiloso: sapo não tem medo de água; o sapo não pode ser medroso, se é o protagonista. O título, enquanto recurso textual e discursivo que supõe redução de informação semântica do texto como um todo, costuma possibilitar ao leitor antecipar sentidos do texto. Nesse caso, pode, à primeira vista, apresentar uma contradição. No entanto, sabendo-se que sapo não tem medo de água, podemos considerar que o leitor já tem – a partir desse título – uma pista sobre quem será o esperto, quem estará enganando, qual a estratégia do protagonista. Nesse sentido, o título passa a ser um recurso provocativo; explicitador da estratégia do sapo.
b) A primeira frase – “O sapo é esperto.” – embora contrarie o título, confirma a esperteza do sapo; ao mesmo tempo ativa a capacidade do leitor para estabelecer a relação entre o que ele sabe sobre o sapo, a contradição em relação ao título e quem será o protagonista do conto, considerando as características de textos desse gênero. É possível, inclusive, inferir qual será a estratégia do sapo para enganar seu antagonista.
c) organização do diálogo, foi elaborada quase sem a presença de verbos ‘discendi’ (verbos de dizer: aqueles que especificam a fala a ser apresentada em cada turno: disse, falou, respondeu, retrucou, perguntou, indagou, murmurou, entre outros); e quase sem referências à origem – ‘autor’ – da fala de cada turno. Esse recurso provoca um efeito de agilidade nas falas e, dessa forma, rapidez à ação da trama, pelo menos até a fala “Vamos botar o sapo na lagoa!”.
Depois disso – quando o final se anuncia e a estratégia está para ser concretizada -, a diferença é visível: há, por duas vezes, o anúncio completo fala do sapo7 (‘Aí osapo ficou triste começou a pedir, com voz de choro:’ e O sapo mergulhou, veio em cima da água fritando satisfeito:’); há, ainda, o apresentação da fala dos meninos, após a primeira fala do sapo (‘Vamos para a lagoa – gritaram os meninos’). É importante tematizar junto aos alunos as pistas que o texto oferece para que identifiquemos quem está falando o que.
Algumas orientações:
·      na primeira fala, a referência ao sapo como objeto da ação do nós implícito em ‘vamos’ – os meninos – indica que não é ele quem fala; a 1ª pessoa do plural (referente aos meninos) indica quem fala;
·      na segunda fala, o verbo de dizer – ‘dizia’ – e a referência à fonte – o sapo – explicitam quem fala. Além disso, há a referência a “meu couro”, que é mais coerente com o personagem sapo, e a ideia de que não adiantaria jogá-lo nos espinhos – intenção dos meninos, apresentada na fala anterior;  
·      na terceira fala, o verbo na primeira pessoa do plural – ‘vamos’ – já indica quem fala; além disso, há uma referência a ele – o sapo -, o que indica que não pode ser o sapo quem fala;
·      na quarta fala, como há uma alternância, e também pelo conteúdo semântico da fala (pois fogo pode matar sapo e, se alguém está dizendo que não, só poderia ser o sapo para salvar-se, o que é coerente com sua estratégia para enganar os meninos), fica fácil deduzir quem fala;
·      quinta fala possui as mesmas características que a terceira;
·      sexta fala é semelhante à quarta: há uma alternância de turno, e também o conteúdo semântico da fala denuncia o seu autor (pois pedra pode matar sapo e, se alguém está dizendo que não, só poderia ser o sapo para salvar-se, o que é coerente com sua estratégia para enganar os meninos);
·      na sétima fala, o verbo na 1ª pessoa do plural, identifica os falantes;
·      na oitava, vale a justificativa apresentada para a 4ª fala;
·      na nona fala, vale o exposto para a sétima.
A diferença na redação das sequências dialogais do texto – quando colocadas em comparação – provocam o efeito de sentido que confere rapidez à primeira parte – ‘bate-volta’ ‘pingue-pongue’ -, e mais lentidão à segunda;
d) O efeito de lentidão conferido à segunda parte é bastante adequado às intenções semânticas: necessidade
    de o sapo demonstrar medo para convencer mesmo os meninos de que ele deveria ser jogado na água; isso
   coloca a necessidade textual de explicar, qualificar a ação para que se tenha uma ideia mais clara da  
   dramatização/encenação realizada pelo sapo, e com sucesso.
Na segunda versão do conto “Sapo com Medo d’água” – a versão de Ricardo Azevedo – encontramos uma progressão organizada de maneira diferente e uma estratégia do protagonista também diferente.
Nela, a estratégia do protagonista é manter-se tranquilo e calado enquanto os bandidos pensam em maneiras de fazer maldades ao animal que, de fato, poderiam prejudicá-lo. Quando os antagonistas tem a ideia de jogá-lo na lagoa é que ele se põe a falar, como se fosse a pior coisa que poderiam fazer com ele. A partir desse momento – com a fala Tudo menos isso” – é que o diálogo fica rápido, com verbos de dizer escasseando progressivamente, assim como a indicação do falante.
Depois da leitura dos dois textos, oriente um trabalho de comparação entre eles, focalizando os aspectos estudados em cada um.
As perguntas a seguir podem orientar uma conversa sobre os textos:
a) quem pega o sapo e por qual razão, em cada uma das versões?;
b) quais ameaças são feitas ao sapo e como ele reage, em cada uma das versões?;
c) qual o plano do sapo em cada um dos textos?;
d) quais são os desfechos?;
d) qual plano vocês acharam mais interessante? Por que?;
e) de qual texto vocês mais gostaram? Por que?.
Ao final do estudo comparativo, aproveite para conversar com seus alunos sobre o fato de que os contos de artimanha, assim como os contos de fadas, têm suas raízes na tradição oral, ou seja, são histórias muito antigas que foram transmitidas ao longo do tempo de geração a geração. Por isso, muitas delas têm diferentes versões, pois, cada pessoa, depois de ouvir a história, conta de seu jeito.
Anexo – textos
Pedro Malasartes e o Lamaçal Colossal
Você conhece o Pedro Malasartes? Se não conhece, pode ir se preparando porque ele pode aparecer aqui a qualquer hora.
Ele não esquenta lugar, está sempre indo de um canto para outro. Fica um tempinho trabalhando numa fazenda, sai e vai para outro emprego num sítio, daí a pouco já está numa vila vendendo umas coisas na feira… Quando a gente menos espera, Pedro já está de novo na estrada, a caminho da cidade ou de outra fazenda onde possa ter uma oportunidade melhor. Muda toda hora, sempre em busca de um trabalho mais bem pago, de um patrão que trate bem, de um negócio mais interessante. Por isso, em cada história ele está fazendo alguma coisa diferente. E sempre procurando dar um jeito de se defender, garantir um prato de comida e não ser explorado. Mesmo que, para isso, acabe enganando alguém.
Acho que uma das primeiras aventuras de Pedro Malasartes foi quando ele foi tomar conta dos porcos de uma fazenda muito grande, de um fazendeiro muito rico e muito sovina.
Quer dizer, no começo Malasartes não tomava conta dos porcos, não. Trabalhava na colheita. Aliás, bem nesse começo ele ainda nem se chamava Malasartes, era só mais um Pedro como tantos outros que ainda não tinha ficado conhecido por fazer arte nem por pregar pela nos outros. Chegou lá pedindo emprego e foi contratado para colher café.
Pedro trabalhou o mês inteiro. De manhãzinha até a noite. No fim desse tempo, quando chegou o dia do pagamento, o patrão deu a ele umas moedinhas.
Só isso, patrão? E o salário que a gente combinou?
Bom, eu tive que descontar sua hospedagem… Se eu for hospedar de graça todo mundo que chega nesta fazenda colossal…
E o senhor chama de hospedagem dormir amontoado com os outros naquele barracão, numa esteira velha, direto no chão duro? – reclamou ele.
Faz até bem para a coluna…
Pedro insistiu:
·           Mas foi uma hospedagem muito cara. Eu tenho pra mim que eu não dormi esse tantão, não…
Não adiantou insistir. O desconto estava feito. E o patrão ainda apareceu com outra explicação:
·           É que tem também o desconto da comida. Se eu for dar comida de graça para todo mundo que chega nesta fazenda colossal…
·           Um descontão desses? Pela comida? Só aquele feijãozinho talo todo dia? E o senhor queria que eu passasse fome? Trabalhasse sem comer? Saco vazio não fica em pé…
·           Claro que não quero ver você com fome! Mas comida custa dinheiro – respondeu o patrão.  Tenho que descontar do seu salário o preço do feijão com arroz, do sal, da linguiça, da lenha que cozinhou a comida, do óleo, do alho e da cebola que a cozinheira usou no refogado, do salário da cozinheira, do sabão que lavou as panelas, do…
·           Chega, patrão, chega! Não precisa mais falar tanto em desconto. Mas eu tenho pra mim que eu não comi esse tantão, não…
Não adiantou discutir. O desconto estava feito.
Pedro resolveu que no mês seguinte ia ser diferente. Trabalhou do mesmo jeito, de sol a sol, mas não dormiu no barracão nem comeu com os outros. Com o pouquinho de dinheiro que tinha ganho comprou na venda sua própria esteira e dormia embaixo de uma árvore. Pescava no ribeirão, armava arapuca na mata, e no fim do dia quase sempre tinha alguma coisa para assar numa fogueira ao ar livre. Arrumava uma frutinha aqui, outra ali, pegava uma espiga de milho verde num milharal, uma raiz de mandioca numa roça, umas folhas de taioba crescendo ao deus dará junto do córrego… Quase sempre dava um jeito de não comer com os outros. Dessa vez o patrão ia ver só. Não ia adiantar vir com aquela conversa de fazenda colossal.
Mas, na hora do pagamento, não foi muito diferente. O patrão descontou um tantinho pelo aluguel do pedacinho de terra onde ele armava a esteira, outro tantinho pelo uso do rio, e outro tantinho pela espiga de milho, pela raiz de mandioca, pelas folhas da taioba, por tudo o que ele tinha comido.
Chega, patrão, chega! Não precisa falar mais em tanto desconto. Mas eu tenho pra mim que eu não usei esse tantão, não… – reclamou Pedro.
·           Se é assim, vou-me embora. Não trabalho mais aqui.
O patrão coçou a cabeça, olhou pra ele e disse:
·           Só se for no mês que vem. Porque neste mês agora vai ter que trabalhar pra mim, para poder acertar nossas contas.
·           Nossa contas? Como assim? – estranhou Pedro.  
·           É que ainda falta acertar sua conta com o armazém.
·           Que armazém? – estranhou Pedro de novo.  
·           Uai, aquela vendinha na beira da estrada. Você não sabe que é minha?
·           E eu lá tenho conta em armazém?  
·           Como não tem? E a esteira que você comprou?  
·           Comprei e paguei, com muita honra! – exclamou Pedro furioso.
·           Pagou a esteira, mas também comprou também um pedaço de fumo de rolo e uma cachacinha… Ou não lembra que comprou?
·           Comprei e também paguei, com muita honra! – exclamou Pedro, furioso!
·           Pagou a primeira… – concordou o patrão.  Mas depois pediu outra, e mais outra, e não tinha mais dinheiro para pagar. Mandou botar na conta. O vendedor anotou tudo. E agora você tem que pagar. Se eu fosse deixar de graça tudo o que todo mundo compra nessa fazenda colossal…
Pedro protestou:
·           Eu tenho pra mim que eu não bebi e não fumei esse tantão, não…
Com ar de bonzinho, o fazendeiro completou:
Mas pode deixar para pagar uma parte no mês que vem.
Pedro saiu dali muito zangado. Mão lembrava de ter bebido muitas doses de pinga. Mas até podia ser. Bem que a mãe dele dizia que isso de tomar uma cachacinha é desgraceira.
De qualquer modo, uma coisa ele estava entendendo: aquilo não ia ter fim nunca.
·           Esse fazendeiro é um explorador! Vem com essa conversinha mole de fazenda colossal, mas está querendo me tratar feito se eu fosse um escravo. Não me paga e não em deixa ir embora. Ah, mas isso não vai ficar assim. Vou dar um jeito.
No dia seguinte, procurou o patrão e se ofereceu para tomar conta dos porcos da fazenda. Esses porcos eram o grande orgulho do fazendeiro. Gordos, bonitos, rendiam um bom dinheiro… Mas comiam muito, fediam muito e bem que davam trabalho. Qualquer esforço para tomar conta deles era sempre bem-vindo.
·           Tudo bem. Então vá cuidar da lavagem deles.
Era duro. Uma espécie de trabalho de lixeiro. Pedro tinha que ir de casa em casa, por toda a fazenda, recolhendo restos de comida, cascas de frutas, alimentos estragados, todo tipo de sobra, e botando tudo nuns latões enormes e pesados, que cheiravam mal. Depois carregava baldes d’água do ribeirão, misturava tudo, jogava nos cochos e abria a porteira do cercado. Os porcos entravam correndo, derrubando uns aos outros, e se amontoavam para a comilança. No meio de uma sujeirada incrível.
Mas Pedro não desanimou. Fez tudo direitinho, no capricho. Quando acabou, perguntou ao patrão:
·           Agora posso levar os porcos para passear?
Passear? Nunca ouvi falar em porco passeando. Ficou maluco?
·           Com todo o respeito, senhor, eu sempre ouvi dizer que exercício faz bem aos animais, a carne deles rende mais e fica maciazinha… Dá um preço ótimo na hora de vender.
Os olhos do fazendeiro brilharam, e ele perguntou, interessado:
·           E como é que você vai levar esses porcos para passear?
·           Ah, patrão, numa fazenda colossal como esta, com toda a certeza não vai faltar um lugar bem especial para seus porquinhos fazerem exercícios. Eu fico tomando conta, como se fosse um pastor, um vaqueiro…
O patrão deu risada:
Um porqueiro, você quer dizer. Mas… pode levar. Só tenha cuidado para eles não se soltarem, não invadirem as roças, não darem prejuízo.
·           Pode deixar, patrão. Já vi um lugar aqui perto que tem uma laminha muito simpática. Acho que eles vão gostar bastante.
Isso foi o que Pedro disse. O que ele não disse é que passara a noite carregando água do córrego para jogar num terreno à beira da estrada, que tinha sido capinado e estava pronto para ser plantado. A noite inteira, para lá e para cá. Desse jeito, Pedro tinha preparado um lamaçal colossal. Levou os porcos diretamente para lá, sentou-se me cima de uma pilha de tábuas que também tinha deixado preparadas e esperou.
Quando apareceu ao longe um caminhão vazio ele fez sinal. O motorista parou. Pedro disse que o patrão estava numa emergência, tivera que fazer uma viagem de urgência e o encarregara de vender logo aqueles porcos, bem baratinho, para mandar dinheiro para ele. Conversa vai, conversa vem, negociou a venda de todos os animais. Com uma única condição: os rabinhos tinham que ficar.
·           É para eu poder prestar contas – explicou.  Ele saiu tão depressa que nem teve tempo de contar. Assim a gente controla exatamente quantos porcos foram vendidos.
O sujeito achou esquisito, mas concordou. Estava com pressa. Queria fechar logo o negócio, antes que surgisse um concorrente pela estrada. Ou que aquele caipira se arrependesse de vender uns animais tão bonitos por um preço tão abaixo do que eles poderiam ser revendidos no mercado. E com os olhos brilhando, enquanto fazia contas mentalmente e calculava o lucro que ia ter, o motorista do caminhão ajudou Pedro a cortar o rabo dos animais e a guardar na carroceria todos os porcos, que subiram por uma rampa improvisada com as tábuas da pilha onde ele estava sentado.
Num instante, os dois se despediram, e o caminhão sumiu na estrada. Com toda aquela porcalhada.
Pedro pôs no bolso o dinheiro da venda e disse pra si mesmo:
·      Agora estou descontando os descontos. Se eu fosse deixar de graça tudo o que tiraram de mim nessa fazenda colossal…
Depois pegou os rabinhos, que tinha deixado separados em cima das tábuas, e foi espetando todos na lama, a uma boa distância uns dos outros. Todos menos um, que ficou segurando.
Feito isso, foi para a casa da fazenda. Quando estava chegando lá perto, começou a correr e a gritar, como se tivesse vindo esbaforido o tempo todo:
·      Socorro! Acudam! Estou precisando de toda ajuda!
Foi uma correria, todo mundo em volta, e ele fingindo que estava sem fôlego, que nem conseguia falar.
·      O que foi?
·      O que está acontecendo?
E o patrão:
·      Cadê meus porcos?
Depois de muito ofegar, beber um copo d’água e fazer de conta que estava sem forças, Pedro finalmente explicou:
·      Levei os bichinhos para passear num lugar onde não tinha nada plantado, e eles descobriram um bom lamaçal. Um lamaçal colossal. Eles adoraram…
Nossa… Não dá pra curtir, propriamente. Mas dói de ler. Ah, dói… Sim, e daí? Conte logo! Onde estão meus animais?
·      Estão lá, fique sossegado…   
·      Então, pra que esse escândalo?
·      Bom, patrão, é que era um lamaçal tão colossal que eles foram se afundando aos pouquinhos.
·      Afundando? Como assim?  
·      Afundando, uai! Ficando com as pernas presas e indo para o fundo, devagarzinho. Quando eu vi, tentei segurar o que estava mais perto. Puxei, puxei, mas não adiantou nada. Olha só! O rabo dele ficou na minha mão, e o coitadinho foi sumindo…
E mostrou o rabinho que guardara.
Foi um espanto! Todo mundo queria ver. O rabo, todo enroladinho, passava de mão em mão. Pedro continuou:
·      Eu então vi que não dava conta sozinho e vim correndo pedir ajuda.
Vamos todos para lá! – ordenou o fazendeiro.
É isso mesmo – concordou Pedro.  Mas é muito porco, nem sei se vai dar. Se o senhor me der licença, eu posso também fazer outra coisa para ajudar.
·      O quê?  
·      Se o senhor me autorizar, eu posso selar uma mula e ir até o vizinho pedir reforço. Ele tem um trator bom, a gente pode amarrar umas cordas fortes nos bichos… Fica mais fácil puxar.
·      Boa ideia! – concordou o patrão.  Mas não vai perder tempo selando mula, não. Monte logo no meu cavalo, que é veloz e já está arreado. Assim vai mais ligeiro.
Era isso mesmo que Pedro queria.
Num instante já estava longe, na direção oposta à do lamaçal colossal. A cavalo e com dinheiro no bolso.
E o patrão, se não estiver esperando reforço até hoje, já deve estar com uma boa coleção de rabinhos de porco na mão. Ou ele estava pensando que ia continuar para sempre explorando todo mundo, sem nunca lhe acontecer nada, naquela fazenda colossal?
A Velhinha Inteligente
Esta é uma história que se conta até hoje na cidade de Carcassonne, ao sul da França. Há várias versões do mesmo caso, mas todas concordam num ponto: a cidade foi salva graças à esperteza de uma mulher.
Há muitos e muitos séculos, a próspera cidade de Carcassonne foi cercada por guerreiros inimigos. Embora protegida por muralhas e portões, a população não estava a salvo: como ninguém pudesse sair, aos poucos a comida foi escasseando. Logo chegou o dia em que ninguém mais tinha o que comer, e os inimigos, do lado de fora, resistiam teimosamente, esperando a rendição da cidade.
Então, o governador de Carcassonne, refletindo sobre a gravidade da situação, resolveu que era preferível entregar-se a ver seu povo morrer de fome. Entretanto, assim que ele anunciou a todos a sua resolução, uma senhora, madame Carcas, já bem idosa e por isso mesmo muito experiente, adiantou-se e disse que tinha um plano para salvar a cidade.
·         Todos riram dela, porém como já se consideravam perdidos, acharam que não faria mal escutá-la.
·         Primeiro, tragam-me uma vaca – pediu ela.
·         Uma vaca?!? – exclamaram. – E como vamos achar uma vaca?
Mas madame Carcas insistiu e todos se puseram a procurar de casa em  casa.
Vira daqui, revira de lá, encontraram, por fim, uma vaca muito magra, na casa de um avarento, que a havia escondido por medo de morrer de fome. Ele bem que reclamou, mas o animal foi levado até a velha senhora.
·           Agora – disse ela – juntem tudo o que puderem de alimentos, restos, cascas, o que encontrarem!
Assim fizeram todos, conseguindo juntar um saco cheio de restos de cereais.
·           Muito bem – aprovou a madame. – Deem tudo isso à vaca!
·           À vaca?!? Isso é um absurdo! Todos nós temos fome!
·           Pois deem tudo à vaca e não vão se arrepender – garantiu a velhinha.
Não sem relutar, fizeram o que ela dizia. A vaca rapidamente engoliu aquilo que para todos parecia um banquete desperdiçado.
·           Agora, abram com cuidado os portões e deixem a vaca sair – ordenou a senhora.  
·           Essa velha é louca! – gritaram alguns. Mas como madame insistisse com tanta segurança, resolveram obedecer-lhe até o fim.
Do lado de fora, a tropa inimiga percebeu que os portões da cidade se abriram.
Intrigados, viram que uma vaca escapava. Mais do que depressa, capturaram o animal e o levaram para seu chefe de armas.
·           Veja, senhor, eles deixaram uma vaca escapar! Graças a esse descuido, hoje teremos um bom jantar!
O chefe, intrigado, ordenou que matassem a vaca. Mas, quando abriram a barriga do animal e ele a viu forrada de cereais, muito preocupado, concluiu:
·           Soldados! Se os habitantes dessa cidade ainda têm tantas provisões que podem alimentar suas vacas e além disso se dar ao luxo de deixá-las escapar, é sinal de que poderão resistir ainda por muito tempo. É melhor nos retirarmos, pois certamente morreremos de fome antes deles.
Assim, os inimigos foram embora e a cidade foi salva.
Dizem que a velhinha, vendo partir os soldados, subiu à torre da igreja e começou a tocar o sino, em sinal de vitória. Ouvindo aquilo, o povo gritou:
·           Viva! Carcas sonne! – que em francês quer dizer “Carcas está tocando o sino”.
É por isso que a cidade foi chamada de CARCASSONNE.
(PAMPLONA, Rosana. Novas Histórias Antigas. São Paulo (SP): Brinque-book, 1998; pp.23-26)
Sapo com Medo de Água (versão 1)
O sapo é esperto. Uma feita o homem agarrou o sapo e levou-o para seus filhos brincarem. Os meninos judiaram dele muito tempo e, quando se fartaram, resolveram matar o sapo. Como haviam de fazer?
–        Vamos jogar o sapo nos espinhos!
–        Espinhos não furam o meu couro – dizia o sapo.
–        Vamos queimar o sapo!  
–        Eu no fogo estou em casa!  Vamos sacudir ele nas pedras!
–        Pedra não mata sapo!
–        Vamos furar de faca!
–        Faca não atravessa!
–        Vamos botar o sapo na lagoa!
Aí o sapo ficou triste e começou a pedir, com voz de choro:
–        Me bote no fogo! Me bote no fogo! Na água eu me afogo! Na água eu me afogo!
–        Vamos para a lagoa – gritaram os meninos.
Foram, pegaram o sapo por uma perna e, fxirn bum, rebolaram lá no meio. O sapo mergulhou, veio em cima da água fritando satisfeito:
–          Eu sou bicho d’água! Eu sou bicho d’água!
Por isso quando vemos alguém recusar o que mais gosta, dizemos:
–                    É sapo com medo de água…
–                     
(CASCUDO, Luis da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo: Global, 2004; . São Paulo: Global, 2004;p.196.)
Sapo com Medo D´Água (versão 2)
Dois homens, fugidos da prisão, pararam na beira da lagoa para matar a sede e descansar um pouco.
Um sapo dormia debaixo da samambaia.
Os bandidos agarraram o sapo.
–        Olha que desengonçado! – disse um deles, apertando o bicho entre os dedos.
–        É feio que dói! – completou o outro, com cara de nojo.
E os dois resolveram fazer maldade.
–        Vamos jogar no formigueiro?
Ouvindo isso, o sapo estremeceu. Por dentro. Por fora, abriu um sorriso indiferente.
–        Que nada – respondeu o outro, percebendo que o sapo não estava nem ligando. – Pega a faca. Vamos picar ele todinho.
O sapo, de olhos fechados, começou a assobiar uma linda melodia.
Os dois bandidos queriam dar um jeito de fazer o sapo sofrer.
–        Sobe na árvore e atira ele lá do alto.
–        Pega o fósforo e acende uma fogueira. Vamos fazer churrasco de sapo!
O sapo espreguiçava-se tranquilo entre os dedos do homem.
Um dos bandidos teve outra ideia.
–        Já sei! Vamos afogar o desgraçado na lagoa!
Foi quando o sapo deu um pulo desesperado e começou a gritar:
–        Tudo menos isso!
Os malfeitores, agora sim, tinham chegado onde queriam.
–        Vai pra água, sim senhor!
–        Não sei nadar! – berrava o sapo.
–        Então vai morrer engasgado!
O bicho esperneava:
–        Socorro!
–        Vai sufocar de tanto engolir água!
–        Não!
–        Vai virar comida de jacaré!
–        Tenho mulher e filhos pra cuidar!
–        Joga bem longe!
–        Me acudam!
–        Lá vai!
O homem atirou o sapo no fundo da lagoa. O sol estava redondo.
O sapo – ploft – desapareceu no azul bonito das águas.
Depois voltou risonho, mostrou a língua e foi embora nadando e cantando e dançando e requebrando n’água, feliz da vida.
(AZEVEDO, Ricardo. Meu livro de folclore. São Paulo (SP): Ática, 2006; p.5-8.)
O Sapo e o Coelho
O Coelho vivia zombando do Sapo. Achava-o preguiçoso e lerdo, incapaz de qualquer agilidade. O sapo ficou zangado:
–        Quer apostar corrida comigo?
–        Com você? – assombrou-se o coelho.
–        Justamente! Vamos correr amanhã, você na estrada e eu pelo mato, até a beira do rio…
O coelho riu muito e aceitou o desafio. O sapo reuniu todos os seus parentes e distribuiu-os na margem do caminho, com ordem de responder aos gritos do coelho.
Na manhã seguinte os dois enfileiraram-se e o coelho disparou como um raio, perdendo de vista o sapo que saíra aos pulos. Correu, correu, correu, parou e perguntou:
–        Camarada Sapo?
Outro sapo respondia dentro do mato:
–        Oi?
O coelho recomeçou a correr. Quando julgou que seu adversário estivesse bem longe, gritou:
–        Camarada Sapo?
–        Oi? – coaxava um sapo
Debalde o coelho corria e perguntava, sempre ouvindo o sinal dos sapos escondidos. Chegou à margem do rio exausto mas já encontrou o sapo, sossegado e sereno, esperando-o. O coelho declarou-se vencido.
(CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo (SP): Global, 2004; p.186.)
A Dona Raposa e os Peixes
Um dia, bem cedinho, seu Raposa andava pelo bosque. Ao passar perto de um rio, viu uma quantidade enorme de peixes nadando. Entusiasmado, ele começou a pescar. Eram tantos os peixes, e seu Raposo estava tão esfomeado, que em pouquíssimo tempo pescou três lindas traíras.
Muito alegre, foi para casa e disse à mulher, ao chegar:
–        Dona Raposinha, olhe só a sorte que tive hoje!
–        Oh! Que traíras enormes! – exclamou dona Raposa, já com água na boca.
–        Pois é. Eu como uma, você outra e ainda vai sobrar uma… Por isso, eu pensei em convidar seu Tigre para almoçar; é sempre bom agradá-lo…
–        Você é quem manda, querido Raposo. Vou fritar com muito cuidado essas traíras. Vão ficar deliciosas! Ande, vá convidar seu Tigre!
Seu raposo esfregou as mãos satisfeito e saiu em busca de seu Tigre. Dona Raposa se pôs a preparar os peixes. Quando ficaram bem fritos, o cheiro era tão apetitoso que ela murmurou:
–        Vou experimentar minha traíra para ver se ela ficou boa de sal. Só um pedacinho de nada, pois ia ser bem chato se eu a comesse inteira antes de seu Raposo chegar com o convidado!
Ela começou a beliscar o peixe e achou-o tão saboroso que se esqueceu do que havia dito. Em poucos segundos o prato ficou limpo.
–        Estava deliciosa! Agora preciso experimentar a do Raposo; ele é muito delicado e, se sua traíra não estiver bem frita, com certeza vai ficar zangado!
Comeu a cauda torrada, depois uma das barbatanas, a seguir a cabeça e, quando percebeu, toda a traíra de seu Raposo havia desaparecido.
–        Meu Deus, comi inteirinha! – ela exclamou.
 – Mas, agora, o estrago está feito. Então não faz mais diferença se eu comer também a última!
E, do mesmo jeito, comeu a última traíra.
Por fim, chegou seu Raposo, acompanhado de seu Tigre, e perguntou à mulher:
–        Preparou as traíras?
–        Claro que sim! Ainda estão no fogo para que não esfriem – ela mentiu.
–        Sirva logo, porque estamos com muito apetite. Não é verdade, seu Tigre?
–        Sem dúvida, seu Raposo. Eu, pelo menos… E com esse cheirinho de peixe frito que há por aqui…
–        Vou pôr à mesa – disse dona Raposa. – Sente-se ali, seu Tigre. Aquele é o seu lugar.
–        Obrigado, dona Raposa.
Seu Tigre sentou-se e Dona Raposa chamou o marido de lado.
–        Vá até o quintal e afie bem as facas, pois as traíras eram muito velhas e ficaram duras demais – ela falou.
Seu raposo correu até o quintal, e dali a pouco podia-se ouvir o barulho que faziam as facas contra a pedra de amolar.
Dona Raposa se aproximou de seu Tigre e lhe disse:
–        Você está ouvindo? É meu marido que está amolando uma faca. Ficou louco e meteu na cabeça que quer comer suas orelhas, seu Tigre; para isso é que ele trouxe você até aqui. Fuja logo, antes que ele volte, por favor!
Seu Tigre se assustou e saiu da casa a todo vapor.
Então, dona Raposa começou a gritar:
–        Seu Raposo, seu Raposo! Venha logo, que seu Tigre fugiu levando todas as traíras!
E seu Raposo, com uma faca em cada mão, começou a correr atrás de seu Tigre, gritando:
–        Seu Tigre, seu Tigrinho! Me dê pelo menos uma!
E o Tigre, achando que seu Raposo se referia às suas orelhas, apertou o passo, morrendo de medo, e não parou até estar bem fechado e seguro em sua casa.
(Conto Tradicional Venezuelano – Contos de Artimanhas e Travessuras. Co-edição latino-americana. Editora Ática. 1988. São Paulo.)
De como o Malasartes fez o Urubu falar
Quando o pai de Pedro Malasartes entregou a alma a Deus, fez-se a partilha dos bens, uma casinha velha, entre os filhos, e tocou a Pedro uma das bandeiras da porta da casa, com o que ele ficou muito contente.
Pôs a porta no ombro e saiu pelo mundo. Em caminho, viu um bando de urubus sobre um burro morto. Atirou a porta sobre eles e caçou um urubu que ficou com a perna quebrada.
Apanhou-o, pôs a porta às costas e continuou viagem.
Obra de uma légua ou mais, avistou uma casa de onde saía fumaça, o que queria dizer que se estava preparando o jantar.
Pedro Malasartes, que sentia fome, bateu à porta e pediu de comer.
Veio antendê-lo uma preta lambisgóia que foi logo dizer à patroa que ali estava um vagabundo, com um urubu e uma porta, a pedir de jantar.
A mulher mandou que o despachasse – que a sua casa não era coito de malandros.
O marido estava de viagem e a mulher no seu bem bom a preparar um banquete para quem ela muito bem o destinava. Neste mundo há coisas!
Pedro Malasartes, tão mal recebido que foi, resolveu subir para o telhado, valendo-se da porta que trazia e lhe serviria de escada. Subiu e ficou espreitando o que se passava naquela casa, tanto mais que sentia o cheiro dos bons petiscos.
Espiando pelos vãos das telhas viu os preparativos e tomou nota das iguarias, e ouviu as conversas e confidências da patroa e da negra.
Justamente na hora do jantar chegou o dono da casa que resolveu voltar de inesperado da viagem que fazia.
Quando a mulher percebeu que ele se aproximava mandou esconder os pratos do banquete e veio recebê-lo e abraçá-lo, muito fingida, muito risonha, mas por dentro queimando de raiva.
Vai daí mandou pôr na mesa a janta que constava de feijão aguado, paçoca de carne seca e cobu, dizendo:
–        Por que não avisou, marido? Sempre se havia de aprontar mais alguma coisa…
Sentaram-se à mesa.
Pedro Malasartes desceu de seu posto e bateu na porta, trazendo o urubu.
O dono da casa levantou-se e foi ver quem era.
O rapaz pediu-lhe um prato de comida e ele chamou-o para a mesa a servir-se do pouco que havia.
A mulher estava desesperada, desconfiando com a volta de Malasartes.
Pedro tomou assento, puxou o urubu para debaixo da mesa, preso pelo pé num pedaço de corda de pita.
Estavam os dois homens conversando, quando de repente o Malasartes pisou no pé quebrado do bicho e este se pôs a gritar: uh! uh! uh!
O dono da casa levou um susto e perguntou que diabo teria o bicho.
Pedro respondeu muito sério:
–        Nada! São coisas. Está falando comigo.
–        Falando! Pois o seu bicho fala?!
–        Sim, senhor, nós nos entendemos. Não vê como o trago sempre comigo? É um bicho mágico, mas muito intrometido.
–        Como assim?
–        Agora, por exemplo, está dizendo que a patroa teve um aviso oculto da volta do senhor e por isso lhe preparou uma boa surpresa.
–        Uma surpresa! Conte lá isso como é.
–        É deveras! Uma excelente leitoa assada que está ali naquele armário…
–        Pois é possível! Ó mulher, é verdade o que diz o urubu desse moço?
Ela com receio de ser apanhada com todo o banquete e certa de que Pedro sabia da marosca, apressou-se em responder:
–        Pois então? Pura verdade. O bicho adivinhou. Queria fazer-te a surpresa no fim do jantar.
E gritou pela preta:
–        Maria, traz a leitoa.
A negra veio logo correndo, mas de má cara, com a leitoa assada na travessa.
Daí a pouco, Pedro Malasartes pisou outra vez no pé do urubu que soltou novo grito.
–        O que é que ele está dizendo?
–        Bicho intrometido! Está candongando outra vez. Cala a boca, bicho!
–        O que é?
–        Outras supresas.
–        Outras?!
–        Sim, senhor: um peru recheado…
–        É verdade, mulher?
–        Uma surpresa, maridinho do coração. Maria, traz o peru recheado que preparei para o teu amo.
Veio o peru. E pelo mesmo expediente conseguiu Pedro Malasartes que viessem para a mesa todas as iguarias, doces e bebidas que havia em casa.
Ao fim do jantar, o dono da casa, encantado com as proezas do urubu, propôs comprá-lo a Pedro Malasartes, que o vendeu muito bem vendido, enquanto a mulher e a preta bufavam de raiva, crentes também, no poder mágico do bicho que, assim, seria um constante espião de tudo quanto fizessem.
Fechado o negócio, Pedro Malasartes partiu satisfeito e vingado.
(Lindolfo Gomes. Contos populares. São Paulo, Companhia Melhoramentos, v. 1. In APOCALYPSE, Mary (org.). Publicado no site Estórias e lendas de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro: http://www.jangadabrasil.com.br/janeiro/cd50100c.htm#apocalypse)
Referências para leitura
CASCUDO, Luís da Câmara. Contos Tradicionais do Brasil. São Paulo(SP): Global, 2004.
MACHADO, Ana Maria. Jabuti Sabido e Macaco Metido. Rio de Janeiro(RJ): Objetiva; 2011(faz parte do acervo do PNLD 2013, 2014, 2015).
PAMPLONA, Rosana. Novas Histórias Antigas. São Paulo(SP): Brinque-Book, 1998.
VASQUEZ, Adolfo Sanchez. ÉticaRio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
VÁRIOS AUTORES. Contos Populares para Crianças da América Latina. Coedição latino-americana. São Paulo(SP): Editora Ática, 1994.

[1] Formadoras do Programa “Ler e Escrever”  Kátia Lomba Bräkling (Supervisora de Língua Portuguesa). Julho de 2014. CEFAI
[2] O conto “A Velhinha Inteligente”, por exemplo, apresentado a seguir, refere-se à cidade de Carcassonne, localizada no sul da França (PAMPLONA, Rosana. Novas Histórias Antigas. São Paulo: Brinque-book.).
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