Qual o melhor método para alfabetizar?
Para o neurocientista português José Morais, professor da Universidade Livre de Bruxelas e doutor em Desenvolvimento da Cognição e Psicolinguística, não é possível afirmar qual é a melhor forma de se aprender a ler e a escrever. Nesta entrevista concedida à Ilona Becskeházy, consultora da área de educação, colunista da Gestão Educacional e comentarista do boletim Missão Aluno, da rádio CBN, Morais aborda as linhas gerais do processo de aprendizagem que decorrem dos atuais conhecimentos científicos e avalia questões práticas de alfabetização, como a importância de se ler para crianças pequenas e as características que diferenciam os métodos fônico e construtivista de alfabetização. Para o especialista português, não há idade certa, do ponto de vista cognitivo, para se alfabetizar uma criança. Porém, ele critica a definição, por parte do governo brasileiro, de alfabetização aos 8 anos: “para a maioria das crianças, pôr a meta da alfabetização aos 8 anos é ou um grande erro ou um grande crime e, de qualquer modo, nega [à criança] um de seus direitos fundamentais”. Morais esteve no Brasil em agosto de 2014 para participar do VII Seminário Internacional, promovido pelo Instituto Alfa e Beto (IAB), em Belo Horizonte (MG). Confira a seguir a entrevista com o educador.
Profissão Mestre: Qual a melhor forma de se aprender a ler e a escrever?
José Morais: Não é possível responder a essa pergunta de maneira detalhada. O que posso enunciar são as linhas gerais do processo de aprendizagem que decorrem dos atuais conhecimentos científicos. Nossos alunos aprendem a ler e a escrever no sistema alfabético de escrita. Ora, os caracteres do alfabeto, separadamente ou em pequenas combinações, representam os fonemas da língua. Os fonemas não são sons – ao contrário do que muitas pessoas pensam –, mas sim unidades fonológicas abstratas. Por exemplo, as sílabas “bi” e “bu” são sons e cada um deles resulta da coarticulação de dois fonemas, de tal modo que o começo do som, influenciado tanto pela consoante quanto pela vogal, é diferente nas duas sílabas. Dito de outro modo, não há segmento acústico que corresponda à consoante “b”. A criança tem de abstrair o fonema por meio de sua correspondência com o grafema (geralmente começa-se por grafemas simples, isto é, constituídos por uma só letra). A tomada de consciência da fala como uma sequência de fonemas faz-se por meio do confronto com a escrita alfabética em atividades apropriadas, propostas pelo professor ao aluno. Depois disso, há uma longa fase – cerca de um ano – de aprendizagem da decodificação (na leitura) e de codificação (na escrita), em que é necessário levar em consideração as regras do código ortográfico da língua, em nosso caso, do português. A prática da leitura e da escrita, acompanhada pelo professor, é necessária para tornar esses processos, que já permitem uma leitura e uma escrita autônomas, cada vez mais eficientes em precisão e rapidez. O sucesso encontrado na aplicação desses processos conduz, pouco a pouco, à constituição de um léxico mental ortográfico, isto é, a um conjunto de representações memorizadas das palavras conhecidas. São essas representações que serão utilizadas de maneira automática na leitura e na escrita. Enquanto, por exemplo, na leitura, a decodificação se faz de maneira intencional e sequencial da esquerda para a direita, na leitura automática a representação das letras da palavra é acessada em paralelo.
Profissão Mestre: Por que ler em voz alta para bebês e crianças pequenas ajuda no processo de alfabetização antes mesmo deste ser iniciado formalmente?
Morais: Por várias razões. Se interagirmos de maneira apropriada com a criança, mostrarmos o que se está lendo, interrogá-la e solicitarmos suas reações, a criança vai compreender que a escrita representa a língua oral, vai tomar conhecimento de características importantes das palavras escritas e dos textos, vai adquirir novas palavras, e vai enfim, assimilar formas gramaticais que não são correntes durante a comunicação oral e aprender a extrair sentido desses enunciados. Além desses aspectos essencialmente cognitivos, há aspectos afetivos, motivacionais e de interação social (na “leitura partilhada” feita e dirigida pelos pais, essa interação envolve seus seres mais queridos) que também são muito importantes para que a criança valorize a leitura e os livros.
Profissão Mestre: Qual a importância do vocabulário no processo de alfabetização? O conhecimento prévio (oral) de palavras, mesmo que erradas, ajuda ou atrapalha na hora de alfabetizar?
Morais: Ajuda, com certeza. Mas convém que o conhecimento das palavras não seja errado. Dou-lhe um exemplo de tentativa de leitura (por decodificação) de uma criança francesa. Em um texto de receita de cozinha proposto em aula, havia a palavra lard, que corresponde a presunto. Ela a decodificou lentamente, mas seguramente até o “d”, que pronunciou. Só que, em francês, o “d” final, em geral, não se pronuncia. Ela deu-se conta de que sua leitura estava errada porque conhecia essa palavra e corrigiu sua própria leitura e disse lar. Seu conhecimento do vocabulário serviu-lhe, portanto, para aprender a ler corretamente essa palavra, e é provável que, com mais experiências, isso tenha contribuído para ela adquirir a regra geral de não ler o d final. Posso acrescentar que a fluência é melhor em leitura oral de listas aleatórias de palavras do que em leitura oral de pseudopalavras (isto é, formadas segundo as regras de constituição das palavras, mas que não existem em nosso léxico porque este não esgota todas as combinações legais). Isso é verdade tanto para a criança que aprende a ler como para o adulto leitor hábil.
Profissão Mestre: Qual sua opinião sobre a escolha do governo brasileiro em estabelecer 8 anos de idade como “idade certa” para alfabetizar?
Morais: Não há idade certa do ponto de vista cognitivo. A “idade certa” de 8 anos como meta da alfabetização elementar nas escolas públicas é a idade certa para reproduzir as diferenças sociais, porque filho de pobre ou remediado que vai para a escola pública vai ter (pelo menos) dois anos de atraso em relação ao filho de rico ou de intelectual que vai para colégio particular e estará alfabetizado aos 6 anos. “Idade certa” é uma expressão que só tem sentido ao se precisar para quê e para quem, sendo, no entanto, certo que, para a maioria das crianças, pôr a meta da alfabetização aos 8 anos é ou um grande erro ou um grande crime e, de qualquer modo, nega [à criança] um dos seus direitos fundamentais.
Profissão Mestre: Qual a diferença entre alfabetização e literacia?
Morais: Como literacia é uma qualidade e alfabetização um processo, deixe-me distinguir entre alfabetismo e literacia. Em primeiro lugar, literacia é mais vasto que alfabetismo, porque se pode ser letrado sem ser alfabetizado. Isso acontece em muitos países do mundo em que só se aprendeu a ler em um sistema de escrita que não é o alfabeto. Em segundo lugar, literacia refere-se em geral a um nível mais aprofundado da habilidade de ler e escrever em um sistema alfabético e de uso produtivo dessa habilidade.
Profissão Mestre: Resumidamente, quais as características que diferenciam os métodos fônico e construtivista de alfabetização?
Morais: O método construtivista (seus defensores falam de uma filosofia) parte do postulado de que se pode aprender a ler naturalmente, como se a escrita fosse uma língua. Já o método fônico reconhece a escrita como uma representação da linguagem oral e, por isso, propõe um ensino sistematizado. O método construtivista pretende partir do sentido das palavras escritas, enquanto o método fônico parte da constatação de que, se não se dispõe de um mecanismo que permita identificar todas as palavras escritas e não só algumas dezenas ou mesmo centenas, não é possível atingir o sentido delas nem ler palavras que se encontrem pela primeira vez. Contrariamente ao método fônico, o método construtivista não reconhece o fato de o alfabeto ser um código, de ele permitir a codificação (na escrita) dos fonemas, unidades abstratas constituintes da fala, e, por conseguinte, também sua decodificação (na leitura), assim como não reconhece a necessidade de ensinar e de insistir na prática intensa desses mecanismos pelo aluno. O problema principal está no fato de que o construtivismo, tal como é aplicado às questões da leitura e da escrita, resulta de uma crença e ignora totalmente os avanços da ciência; quando se lê os textos construtivistas, tem-se a impressão de que a ciência da leitura não existe.
Profissão Mestre: Por que os construtivistas “acusam” os adeptos do método fônico de não permitirem que os alunos deem sentido às palavras que aprendem?
Morais: É uma estranha acusação, porque os adeptos do método fônico nunca defenderam isso. É importante os alunos entenderem o sentido das palavras que aprendem. Não de lhes “dar” sentido, claro, visto que as palavras têm o sentido que resulta da história e do uso da língua, mas de entender corretamente o sentido delas e de aprender a utilizá-las com o sentido que têm. Obviamente, isso não impede a extensão criadora de sentido, desde que se tenha consciência de que se vai além do sentido usual.
Profissão Mestre: Há diferença no processo cognitivo mobilizado na alfabetização de crianças e na de adultos?
Morais: Não sabemos ainda com exatidão. A diferença não deve ser grande, porque é possível alfabetizar adultos até de idade já avançada. É difícil comparar porque as relações sociais, as motivações e o padrão de aquisições cognitivas de cada indivíduo são muito diferentes. Também o processo de alfabetização se faz em condições muito diferentes nos dois casos. Pode acontecer que o adulto recorra mais, ou durante mais tempo que a criança, a processos de atenção sequencial na leitura das palavras, mas é muito difícil verificar isso sem um estudo experimental que seria exageradamente longo e oneroso e que se justificaria mais por razões teóricas que práticas.
Profissão Mestre: É possível (e recomendável) aprender a ler e a escrever em mais de um idioma ao mesmo tempo?
Morais: Não diria exatamente ao mesmo tempo, mas não vejo problema que isso aconteça quase simultaneamente, desde que seja em momentos separados, visto que os códigos ortográficos nunca são completamente os mesmos. Isso acontece em países bilíngues e não tem suscitado problemas.