Livro didático: como usá-lo com equilíbrio |
Como em boa parte das polêmicas, aqui também os extremos não ajudam. Primeiro, por uma constatação concreta: livros didáticos estão por toda a parte. Hoje, o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) faz com que 82% dos alunos da Educação Básica recebam gratuitamente obras escolhidas pelo corpo docente das próprias instituições em que estudam. Em segundo lugar, porque o material passa por uma avaliação pedagógica. Todos os livros disponíveis para distribuição são aprovados por uma comissão técnica da Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação (MEC). Os que não passam no crivo – por ser excessivamente ideológicos, por exemplo – nem chegam às escolas.
Diante desse ponto de vista, vale a pergunta: como usar o livro didático com equilíbrio? A indagação transfere às mãos do professor a decisão sobre o aproveitamento do recurso. Na metáfora do livro como guia, significa dizer que ele pode assumir diferentes formas: uma bússola, que indica o norte ao viajante, mas deixa por sua conta a trajetória e o destino; um mapa em papel, no qual se vê a autopista sugerida, mas também atalhos e estradinhas vicinais que é possível tomar; ou um GPS, que seleciona a rota por você e ordena, detalhadamente, o caminho até o destino.
O debate sobre a apropriação das coleções didáticas aponta, assim, não apenas para a função do livro mas também para a atuação docente. É o professor – intelectual que reflete e produz conhecimento sobre sua prática – quem decide (ou deveria decidir) o peso do recurso.
Os escritos de Macedo sublinham uma função do livro didático típica de nosso país: atuar na formação em serviço dos docentes. “Os primeiros cursos de formação de professores no Brasil só surgem na década de 1930”, conta a historiadora Circe Bittencourt, docente e organizadora do Banco de Dados de Livros Escolares Brasileiros (Livres), na Universidade de São Paulo (USP). “Até lá, é nos pioneiros livros didáticos que os interessados encontram algumas instruções sobre as melhores maneiras de lecionar.”
Ainda que isso possa ocorrer num contexto de baixa qualificação, formar professores está longe de integrar o propósito dessas obras – nada substitui a qualificação formal. Se essa função se perpetuou é porque a formação ainda possui graves deficiências. Para muitos docentes, o livro didático acaba sendo, na prática, um misto de coordenador pedagógico e de currículo. Deveria ser o inverso: o primeiro critério de escolha de uma obra é sua adequação ao projeto político-pedagógico e ao currículo de cada instituição.
Como explica Heloisa Ramos, formadora de professores e autora de livros didáticos, “todo livro possui uma concepção por trás. É preciso ver se a escola compactua com ela, se os valores da instituição estão contemplados nele” (saiba como identificar essas e outras características dos materiais nas respostas da última página). Se for esse o caso, nada impede que o livro seja utilizado pelos estudantes de forma intensiva – no limite, em casos raros, pode mesmo ser seguido à risca se houver grande coincidência de objetivos de aprendizagem e de linhas pedagógicas (leia o depoimento da professora Lorena Coutinho, na página 3).
Meu ambiente de trabalho me dá todas as condições para conseguir essa independência do material. Sou professora de uma Escola de Aplicação. Das 40 horas semanais que preciso cumprir, pouco mais de um terço é em sala de aula. No restante, me dedico a outras atividades relacionadas à docência, como o planejamento e meu aprimoramento profissional.”
Maíra Batistoni e Silva (foto acima), professora de Ciências e Biologia nos ensinos Fundamental e Médio da Escola de Aplicação da USP
Quanto usar? O planejamento deve servir de baliza. É o detalhamento dos conteúdos de ensino, das expectativas de aprendizagem e dos projetos que serão trabalhados que define a utilização do livro. Ele ajuda a encontrar exercícios, textos e recursos gráficos que farão as crianças avançarem na direção desejada – e outros que serão deixados de lado (leia o depoimento da professora Maíra Batistoni e Silva, na página anterior). “Por melhor que seja o livro, ele sempre terá lacunas”, explica Heloisa. Pelo mesmo viés, a especialista da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Liliam Rosa Prado, que aborda o assunto em seu doutorado, registra a necessidade de turbinar o material didático em sala com outras fontes além do livro. “Isso vale para completar, comparar e se preciso contestar os dados da obra”, enumera.
A opção por utilizar o livro didático de uma maneira refletida e consciente, como a descrita até aqui, é mais trabalhosa e complexa do que só apresentá-lo de ponta a ponta para as turmas ao longo do ano (e, no ano seguinte, repetir a operação com outros alunos…). Justamente por isso, o ideal é que seja uma tarefa coletiva, no âmbito da formação em serviço. “No horário pedagógico, os professores podem compartilhar quais atividades do livro deram certo, como complementar determinados pontos e o que foi preciso modificar no planejamento”, comenta Ana Sueli Pinho, docente da Universidade Católica do Salvador (Ucsal), na capital baiana. “O coordenador, de seu lado, identifica necessidades de formação com base no uso do material.”
Hoje, primeiro defino o que quero ensinar, com base nas diretrizes curriculares do município e na sequência que julgo fazer mais sentido para os alunos. Pesquiso materiais e referências em diversos lugares para montar minhas aulas. Só então vejo como o livro didático se encaixa na proposta.
Alguns conteúdos nem aparecem no livro. Nesses casos, encaminho as aulas com base em outros recursos. Às vezes, faço adaptações. Por exemplo: uma atividade do livro pedia que os alunos explicassem o que significam as siglas IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e IDH-AD (Índice de Desenvolvimento Humano Ajustado à Desigualdade). Como o significado das siglas não era o essencial, reescrevi a consigna, pedindo que eles diferenciassem os dois conceitos.”
Vanda Cristina Girardi (foto acima), professora de Geografia na EMEB Adelaide Starke, em Blumenau, a 149 quilômetros de Florianópolis
Ana Sueli Pinho, docente da Universidade Católica do Salvador (Ucsal)
Os entusiastas da adoção do material estruturado recorrem a ele como alternativa para melhorar os indicadores de qualidade de uma determinada rede de ensino – por exemplo, um baixo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Analisam a Educação do ponto de vista de gestão de redes e preconizam que um certo nível de uniformidade na prática do ensino ajudaria a combater as desigualdades, melhorando os resultados gerais. As apostilas, com suas orientações passo a passo, cumpririam esse papel.
Um bom exemplo dessa linha de argumentação é o relatório Como um Sistema Escolar de Baixo Desempenho pode Evoluir para Tornar-se Bom?, da consultoria Mckinsey . O estudo, que compara 20 redes educacionais ao redor do mundo, recomenda o material didático estruturado para sistemas de desempenho fraco (caso do Brasil), pois eles avançariam por meio de um planejamento centralizado “que determina a prática de ensino das escolas e dos professores”. Os pesquisadores admitem que essa abordagem não funciona em sistemas de bom e excelente desempenho, em que a autonomia docente é tida como chave para a qualidade.
De um olhar mais próximo ao chão da escola, é difícil não enxergar esse conjunto de medidas como uma ameaça ao ideal profissional do professor como intelectual. A formação frágil, realidade atestada por diversas pesquisas, poderia ser combatida de maneiras mais consistentes, como o estabelecimento de um currículo nacional e pelo investimento na qualificação inicial e continuada de professores e gestores. “A lógica dos sistemas apostilados não foca na atuação docente e na construção de alternativas efetivas para os problemas objetivos”, diz Theresa. Aponte-se, ainda, o fato das apostilas não passarem pelo crivo do MEC, como ocorre com os livros do PNLD.
A polêmica cresce. Em 2013, duas professoras da rede de Aracaju se recusaram a utilizar um material estruturado comprado pela secretaria. Como punição, elas foram afastadas do trabalho por 30 dias e tiveram seus pagamentos suspensos. Neste ano, a Justiça invalidou a sentença, reconhecendo que as docentes têm o direito de escolher seus materiais. O professor, com seu conhecimento, ainda é indispensável.
Na rede privada, é diferente. Escolho os livros junto com a coordenação pedagógica e com meus colegas. A base para a seleção é a nossa matriz curricular. Analisamos quais vão nos ajudar a tratar os tópicos, de modo que possamos pensar em atividades que não envolvam o suporte escrito: entrevistas, vídeos, seminários etc.
Recentemente, temos feito encontros com autores de alguns materiais, para que eles possam explicar melhor qual a linha de pensamento em suas obras. Alguns livros se encaixam melhor com nossa proposta do que outros. Os de Língua Portuguesa, apesar de muito bons, precisam ter a ordem mudada. Já o de Geografia dialoga muito com nosso planejamento, então seguimos à risca. Não vejo problema nisso. Afinal, é uma opção consciente do grupo de educadores, com base na afinidade entre a concepção do livro, o projeto político-pedagógico e o currículo da instituição.”
Lorena Coutinho (foto acima), professora do Ensino Fundamental 1 na EM Ivone Vieira Lima e no Colégio Marista Patamares, em Salvador
Liliam Rosa Prado, especialista da Universidade Federal do Paraná (UFPR)
Da escolha à forma de usar, reunimos as dúvidas mais recorrentes dos professores
Muita gente o enxerga só como livro de respostas dos exercícios. Sua função mais importante é explicar quais são as bases teóricas e as concepções de ensino que inspiram a obra. Há também complementos de diversas naturezas: textos extras, explicações mais detalhadas, informações sobre pesquisas recentes da área. “O manual deve orientar o desenvolvimento das atividades propostas e explicitar as decisões do autor”, afirma Priscila Monteiro, consultora pedagógica da Fundação Victor Civita (FVC) e autora de livros didáticos.