O bicentenário do escritor infantil Hans Christian Andersen é uma boa oportunidade para explorar a fantasia das crianças com histórias clássicas como O Patinho Feio e O Soldadinho de Chumbo
Era uma vez um garoto pobre e feio que queria ser ator. Uma de suas poucas alegrias era assistir histórias populares encenadas pelo pai, que era sapateiro, em um teatrinho feito de papelão. Quando o pai morreu, o sonho do menino ficou mais distante, já que ele teria que sustentar a família. Um dia, o garoto partiu para bem longe e passou fome e frio até conhecer um homem que pagou seus estudos e viagens pelo mundo. O menino não se tornou ator, mas ficou rico e famoso escrevendo histórias infantis.
O maravilhoso mundo dos contos de fadas e seu poder de formar leitores |
A vida do dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875) daria um conto de fadas. E rendeu muitos, pois em cada narrativa escrita por ele há um pouco de suas tristezas e alegrias, como em O Patinho Feio. Ele é autor de cerca de 160 contos e seis romances, além de poesias e de uma autobiografia. Sua obra foi traduzida para mais de 100 línguas.
A genialidade de Andersen está na leveza, na poesia e na melancolia com que trata o sofrimento infantil. Os escritores que o antecederam, como o francês Charles Perrault (1628-1703) e os irmãos alemães Jakob (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859), apenas registravam no papel as histórias já contadas oralmente pelo povo, como Chapeuzinho Vermelho. Andersen é definitivamente o primeiro escritor infantil. O aniversário de 200 anos do autor é uma oportunidade de desenvolver um projeto de leitura na escola e de explorar as características dos contos de fadas ? gênero literário que dá ao leitor oportunidade de encontrar significado para a vida.
É fácil reconhecer um conto de fadas. Animais que falam, fadas madrinhas, reis e rainhas não podem faltar, assim como a introdução “era uma vez”. As narrativas se passam em um lugar distante ? “muito longe daqui” ? e têm personagens com nomes comuns ou apelidos, como João e Chapeuzinho Vermelho. Esses elementos facilitam a memorização e tornam a narrativa apropriada à oralidade. “No conto maravilhoso, o leitor é transportado para um mundo onde tudo é possível: tapetes voam e galinhas põem ovos de ouro. Essa é a magia da fantasia”, explica Lilian Mangerona Corneta Rotta, mestre em literatura pela Universidade Estadual Paulista.
Fantasia ajuda a formar a personalidade
A literatura infantil surgiu somente no século 17, com a descoberta da prensa. As histórias infantis e os contos populares, no entanto, existem desde que o ser humano adquiriu a fala. Há notícias de histórias antigas na África, na Índia, na China, no Japão e no Oriente Médio ? como a coleção de contos árabes As Mil e Uma Noites. “A fantasia é um mecanismo inventado pelo homem na era medieval para superar as dificuldades da vida real”, conta Katia Canton, especialista em contos de fadas pela Universidade de Nova York.
Algumas histórias tratam de temas que fazem parte da tradição de muitos povos e apresentam soluções para problemas universais. “É o caso de O Pequeno Polegar. O personagem representa o desejo de vingança do mais fraco contra o mais forte”, afirma Lilian. Os pequenos se identificam com os heróis e experimentam diversas emoções. Que criança não fica com medo ao imaginar o Lobo Mau devorando a Vovozinha? Ou odeia a bruxa quando ela prende Rapunzel na torre?
Para a escritora Ana Maria Machado, os contos de fadas pertencem ao gênero literário mais rico do imaginário popular. “Essas histórias funcionam como válvula de escape e permitem que a criança vivencie seus problemas psicológicos de modo simbólico, saindo mais feliz dessa experiência.”
A idéia foi difundida após a divulgação dos estudos do psicólogo austríaco Bruno Bettelheim (1903-1990). Para ele, nenhum tipo de leitura é tão enriquecedor e satisfatório do que os contos de fadas, pois eles ensinam sobre os problemas interiores dos seres humanos e apresentam soluções em qualquer sociedade. Ou seja, a fantasia ajuda a formar a personalidade e por isso não pode faltar na educação. “A criança aumenta seu repertório de conhecimentos sobre o mundo e transfere para os personagens seus principais dramas”, diz a terapeuta Mariúza Pregnolato Tanouye, de São Paulo.
Uma obra é clássica e referência em qualquer época quando desperta as principais emoções humanas. O que os pequenos mais temem na infância? A separação dos pais; e esse drama existencial aparece logo no começo de muitas histórias consideradas referências na literatura. Para Bettelheim, a agressividade e o descontentamento com irmãos, mães e pais são vivenciados na fantasia dos contos: o medo da rejeição é trabalhado em João e Maria, a rivalidade entre irmãos em Cinderela e a separação entre as crianças e os pais em Rapunzel e O Patinho Feio.
A leitura das histórias no passado tinha mais um propósito muito claro: apontar padrões sociais para as crianças. O objetivo das moças ingênuas era encontrar um príncipe, como mostrado em A Bela Adormecida e Cinderela. Em A Polegarzinha, de Andersen, a recompensa final da protagonista, Dedolina, também era o casamento. Já garotas desobedientes, como Chapeuzinho Vermelho, deparavam com situações dramáticas, como enfrentar o Lobo Mau. Essa história tinha forte caráter moral na sociedade rural do século 17: camponesas não deviam andar sozinhas. “Isso mostra como os contos serviam para instruir mais que divertir”, afirma Mariúza.
Medo e morte devem fazer parte dos contos
Por que histórias de reis e rainhas e de moçoilas à espera de um príncipe ainda fazem sentido hoje em dia? “Os contos são um patrimônio da humanidade. Eles foram escritos em outra época e a criança consegue compreender isso. Clássicos são clássicos porque se perpetuam, e as obras infantis devem ser respeitadas como a literatura para adultos”, diz Katia Canton. Ela explica, no entanto, que as histórias mudam de acordo com a cultura e a época. Canibalismo e incesto, por exemplo, foram retirados de histórias antigas. Na versão original de Chapeuzinho Vermelho, o Lobo devora a Vovó e a própria Chapeuzinho, e o Caçador não existe. A vida da menina foi poupada na versão dos irmãos Grimm.
Especialistas afirmam que a tendência de retirar o mal, o medo e o castigo das narrativas é forte atualmente. “As mudanças de enredo apaziguam as emoções que precisam ser vividas. Não é saudável evitar que as crianças enfrentem os conflitos”, lembra Katia. Assim, é possível usar e abusar de filmes que recontam A Bela e a Fera e O Patinho Feio, por exemplo, mas é preciso apresentar primeiro as obras que mais se aproximam dos originais. Um critério é escolher livros traduzidos por um escritor conhecido. Fazer paródias, promover uma visão crítica dos temas tratados e indicar a época em que as novas versões foram escritas ajudam a garotada a refletir.
Para Marisa Lajolo, professora da Universidade de Campinas, o mais importante é que pais e professores se sintam confortáveis ao contar uma história. “Todos os estudiosos do assunto afirmam que as crianças gostam de violência. Aliás, um dos prazeres da arte, para crianças e adultos, parece ser exatamente a sensação de viver por empréstimo grandes aventuras, grandes amores e… grandes crueldades também!”
Leitura também para adolescentes
No Instituto Educacional Stagium, em Diadema (SP), os contos de fadas fazem parte das atividades diárias na Educação Infantil e são explorados com criatividade pelos professores. Um tapete mágico, confeccionado com retalhos pelos próprios alunos, sinaliza que é hora de a professora Maristela Aparecida Martins de Paiva contar histórias. Assim que ela coloca o tapete no chão, a turma senta ansiosa ao seu redor. “É importante criar esse universo de magia e curiosidade para facilitar o mergulho das crianças nas histórias.” A atividade é completada com a moldura mágica. Toda semana, um livro é apresentado aos pequenos aos poucos, com muito suspense. A cada dia, a professora mostra uma página e pede para as crianças adivinharem a história pela ilustração. Só na sexta-feira Maristela lê a obra inteira. Os pais também participam do projeto: oficinas de leitura de histórias acontecem nas reuniões para que eles aprendam a proporcionar aos filhos esses momentos de magia.
Os contos de fadas não devem ficar restritos às séries iniciais. Na adolescência, esse tipo de leitura contribui para a formação de alunos leitores e críticos. Na Escola Novos Caminhos, em Santos (SP), alunos de 5ª a 8ª série também lêem os contos durante as aulas. Ada Priscila da Silva, professora de Língua Portuguesa, pede para cada aluno levar um livro de casa e relembrar momentos de leitura com os pais. “Eles se emocionam e contam fatos significativos vividos em família e proporcionados pela leitura. É um estímulo para os estudos de literatura.” Quais personagens mais marcaram a vida dos jovens? Os alunos respondem e justificam as escolhas com uma redação. Os campeões são o Lobo Mau, o Soldadinho de Chumbo, Branca de Neve e Cinderela ? os adolescentes traçam um paralelo com os políticos atuais e com as cobranças dos padrões sociais.
Obras que não podem faltar na escola
CONTOS DE PERRAULT, tradução de Fernanda Lopes de Almeida, 88 págs., Ed. Ática, tel. (11) 3990-2100
HISTÓRIAS MARAVILHOSAS DE ANDERSEN, tradução de Heloisa Jahn, 120 págs., Ed. Companhia das Letras, tel. (11) 3707-3500
OS CONTOS DE GRIMM, tradução de Tatiana Belinky, 288 págs., Ed. Paulus, tel. (11) 3789-4000
OS TRÊS PORQUINHOS, tradução de Ana Maria Machado, 32 págs., Ed. Melhoramentos, tel. (11) 3874-0644
RAPUNZEL, tradução de Maria Heloisa Penteado, 16 págs., Ed. Ática
Os mais famosos contos de Andersen
O Isqueiro Mágico (1835)
Um soldado encontra um isqueiro mágico que realiza todos os seus desejos. Depois de perder tudo o que ganhou, ele faz um novo pedido e, rico, passa a ajudar os pobres. É o primeiro livro escrito pelo autor dinamarquês.
O Soldadinho de Chumbo (1838)
O protagonista é um boneco de uma perna só. Após passar por muitas aventuras nas mãos de crianças, ele se apaixona por uma boneca bailarina. Mas é jogado em uma lareira junto com sua amada. Trata-se do primeiro conto totalmente criado por Andersen. A história não tem um final feliz.
O Patinho Feio (1843)
Um pato feio e desengonçado é rejeitado pela família por ser diferente. Ele foge e descobre que é na verdade um belo cisne. É a história que representa de maneira mais explícita a vida do autor. A ilustração ao lado foi feita em 1847 por Vilhelm Pedersen, que ilustrou diversos contos de Andersen.
A Pequena Vendedora de Fósforos (1846)
No último dia do ano, uma menina perambula pelas ruas frias de uma cidade. Ela tenta vender fósforos para se sustentar, mas acaba acendendo todos, um a um, para se aquecer. É considerado um dos contos mais tristes da literatura infantil. Andersen se inspirou na infância da mãe para escrevê-lo.