A pedagogia de Rousseau: Artigo enviado pelo nosso parceiro “Professor Marcos L Souza – Pedagogo – Psicopedagogo – Educador musical – Historiador.
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A pedagogia de Rousseau
A Pedagogia e filosofia da educação de Jean-Jacques Rousseau, a exemplo de seu pensamento antropológico e político, funda-se no pressuposto de que a ordem da natureza é dotada de racionalidade e harmonia perfeita.
Neste artigo, exporemos os princípios pedagógicos formulados por Rousseau, os quais caracterizam sua pesquisa pela filosofia pedagógica ligada à natureza. A ênfase é dada nos dois princípios fundamentais, quais sejam: o princípio da natureza benigna do homem e o da liberdade.
A educação que se erige com base nesses princípios se contrapõe radicalmente à educação de cunho teológico-cristã praticada na época de Rousseau, bem como, faz frente a muitas práticas e métodos educacionais contemporâneos.
A pedagogia rousseauniana, se baseia com ênfase no principio de liberdade e da natureza, manifestos na condição de benignidade natural do homem. Em Rousseau os significados dos conceitos de liberdade e natureza, do ponto de vista lógico-formal, têm sua relação marcada pela bicondicionalidade. Quer dizer, uma situação de liberdade é possível, se e somente se, houver uma situação de natureza, e vice-versa. Se, em determinada ocorrência, liberdade e natureza não se apresentam numa articulação explicita, com certeza, da análise criteriosa da situação em que o significado de um desses conceitos está envolvido, pode se necessariamente deduzir o significado do outro.
A liberdade pressupõe a natureza e a recíproca é verdadeira. Então, uma educação adequada, segundo Rousseau, é aquela que busca conservar no ser humano, as qualidades que lhe são indispensáveis para que seja verdadeiramente humano, ou seja, os atributos próprios de sua natureza mesma. Todos os demais princípios da educação rousseauniana são derivados desses princípios fundamentais.
Fundamentos
Rousseau não é um educador, no sentido prático do termo, e sim, um pensador da educação. Ele mesmo o revela na seguinte passagem do Emílio: A exemplo de muitos outros, não porei mãos à obra, mas à pluma e, em lugar de fazer o que se deve, empenhar-me-ei em dizê-lo. (ROUSSEAU, 1999, p. 27). A preocupação de Rousseau se prende à filosofia da educação e não às didáticas particulares. Assim, seu campo de interesse circunscreve-se aos princípios e não à apresentação de técnicas pedagógicas. Contudo, apesar da intenção primeira de sua obra se ater ao campo teórico, isso não ocorre com exclusividade. Conforme suas próprias palavras, em determinados momentos faz alusão ao aspecto prático de sua teoria.
Dizendo: contentei-me em colocar os princípios, cuja verdade cada qual deve perceber. Mas, quanto às regras que podiam precisar de provas, apliquei-as todas ao meu Emílio ou a outros exemplos, mostrei em pormenores bastante extensos como podia ser realizado o que eu estabelecia; este, pelo menos, é o plano que me propus a seguir3 (ROUSSEAU, 1999, p. 28). O projeto pedagógico de Rousseau, tanto em sua dimensão teórica quanto na prática, exposta em forma de exemplos, vincula-se à sua crença na ordem da natureza. Dessa convicção, Rousseau extrai todos seus princípios pedagógicos. O principal deles encerra tamanha amplitude que chega a extrapolar o campo pedagógico fundamentando sua produção antropológica e política. Refiro-me ao princípio da benignidade natural humana, segundo o qual o ser humano é bom por natureza, mas corrompido pela sociedade. No Emílio, esse princípio tem sua expressão cunhada nos seguintes termos: tudo está bem quando sai das mãos do autor das coisas, tudo degenera entre as mãos do homem (ROUSSEAU, 1999, p.7).
Partindo, desse princípio, Rousseau defende a ideia de que a preparação da criança para uma existência imune à opinião, isto é, autêntica, bem como para o convívio social razoável, deve ser realizada de forma tal que, sua bondade natural, seja preservada da influência corruptora da sociedade. Caso contrário, o que restaria à humanidade, uma vez entregue aos primitivos instintos puros, ao mesmo tempo em que vive em sociedade, seria a barbárie. Com efeito, no
… Estado em que agora as coisas estão, um homem abandonado a si mesmo desde o nascimento entre os outros seria o mais desfigurado de todos. Os preconceitos, a autoridade, a necessidade, o exemplo, todas as instituições sociais em que estamos submersos abafariam nele a natureza, e nada poriam em seu lugar7. (ROUSSEAU, 1999, p. 7)
Para Rousseau a ordem da natureza é expressão de uma racionalidade universal. Formar homens razoáveis então estaria de acordo com a preservação da bondade natureza do homem. Entretanto, o fato do objetivo final da educação rousseauniana se voltar para a construção do homem razoável, não implica uma aprendizagem fundada na racionalidade do educando. Mesmo porque, o desenvolvimento da sensibilidade tem precedência sobre o da razão. Existir para nós é sentir, nossa sensibilidade é incontestavelmente anterior à nossa inteligência, e tivemos sentimentos antes de ideias. (ROUSSEAU, 1999, p. 392). Além do que, a capacidade concreta para o uso da racionalidade intelectiva não é inata. Ela se desenvolve gradualmente, atingindo sua maturidade na idade adulta. Desta forma, esperar que o uso da razão seja o principal meio empregado pela criança, em seu processo de aprendizagem é incorrer em grave erro. Vejamos as palavras de Rousseau (1999, p. 84) a esse respeito:
Raciocinar com as crianças era a grande máxima de Locke. É a mais em moda hoje. Seu sucesso, todavia, não me parece muito capaz de dar-lhe algum crédito. De minha parte, não vejo nada de mais tolo do que essas crianças com quem tanto se raciocinou. (…) A obra-prima de uma boa educação é formar um homem razoável, e pretende-se educar uma criança pela razão! Isso é começar pelo fim, é da obra querer fazer o instrumento. Se as crianças ouvissem a razão, não precisariam ser educadas…
Dado que Rousseau tem como princípio básico pautar as ações pedagógicas pela natureza, nada caracterizaria melhor esse princípio que privilegiar a dimensão da sensibilidade, ao invés de enfatizar a dimensão racional, pois a sensibilidade nos é inatamente natural, ou, seja, dispomos dela efetivamente mesmo antes de nosso nascimento. Enquanto que a razão é potencia e como tal figura na pedagogia de Rousseau como objetivo a ser alcançado e não meio. Intimamente vinculado ao princípio geral da benignidade natural, temos outro princípio fundamental, o da liberdade. Ora, sendo o elemento distintivo, da educação de Rousseau, a formação do homem razoável, conservando nele os predicativos da bondade natural, nada mais lógico fundar sua educação sobre a liberdade.
Em razão de natural significar tudo aquilo que concorre para o bem-estar da criatura, e bondade significar esse bem-estar, a liberdade pode ser qualificada como a mais alta expressão da bondade natural. Mesmo porque a liberdade é o principal elemento a corroborar com o bem-estar da criatura humana, ao mesmo tempo em que é em ser livre que consiste seu bem-estar essencial. Ou melhor, a liberdade é o elemento que aglutina ao mesmo tempo a qualidade de natural e de boa.
Rousseau, no Emílio, assim formula seu princípio de liberdade: O homem verdadeiramente livre só quer o que pode e faz o que lhe agrada. Eis a minha máxima fundamental. Trata-se de aplicá-la à infância, e todas as regras da educação decorrerão dela (ROUSSEAU, 1999, P. 76). O conceito de liberdade aqui, como se pode notar, não é absoluto. Comporta certas condições: liberdade não é fazer tudo que se quer indistintamente. O querer livre é limitado pelo poder. Mas em que consiste este poder? É lícito considerar algo sujeito à restrição como sendo livre? O poder limitante consiste nas forças naturais que se impõem sob o signo da necessidade. Então, em última instância, o ser humano só pode o que a lei da necessidade permite. Querer ir além da necessidade é querer o que não pode, e, portanto, é um querer ilusório. Se portar assim é alimentar uma atitude de agressão à sua própria natureza e, consequentemente, negar a si mesmo, visto que o eu autêntico está em plena sintonia com a natureza. Ora, nos diz Rousseau não te revoltes contra a dura lei da necessidade (…) Tua liberdade, teu poder só vão até onde vão tuas forças naturais, e não além; todo o resto não passa de escravidão, de ilusão e de prestígio (ROUSSEAU, 1999, p. 75). Assim, o princípio da liberdade constitui na pedra de toque da filosofia da educação de Rousseau.
Princípios de Emílio
Subordinados aos dois princípios gerais apresentados benignidade natural e liberdade, Rousseau nos apresenta vários outros princípios de conotação mais específica, dentre os quais destacamos os seguintes: o princípio da adaptabilidade entre a idade do educando e o conteúdo de seu aprendizado. Uma criança sabe que deve tornar-se adulta, todas as idéias que pode ter sobre a condição de adulto são oportunidades de instrução para ela; porém, sobre as idéias dessa condição que não estão ao seu alcance, ela deve permanecer numa ignorância absoluta. Todo o meu livro não passa de uma prova contínua desse princípio de educação (Rousseau, 1999, p. 223).
As lições devem ser coerentes com a idade da criança, pois cada idade encerra, em si, uma capacidade de compreensão. Portanto a criança não pode ir além dessa capacidade. Até para que se possa atingir o ápice da capacidade, à altura de sua idade, é indispensável a colaboração do preceptor, no sentido de despertar o interesse da criança para as diversas realidades ao seu alcance de compreensão. A curiosidade natural deve ser incentivada a desenvolver-se, pois é esta a fonte do desejo de aprender. Isso nos leva a outro princípio rousseauniano expresso da seguinte forma: Não se trata de ensinar-lhe as ciências, mas de dar-lhe o gosto para amá-las e métodos para aprendê-las quando esse gosto estiver mais desenvolvido. Este é com toda a certeza um princípio fundamental de toda boa educação. (ROUSSEAU, 1999, p.212). Se ele próprio vos fizer perguntas, respondei tanto quanto necessário para alimentar a sua curiosidade, não para satisfazê-la (ROUSSEAU, 1999, p.212).
Uma vez adquirido o desejo de aprender e já exercitado a maneira de fazê-lo, o educando está, então, de posse das condições de conduzir seu próprio processo deaprendizagem, ainda que dependa do preceptor no sentido de orientar essa condução à essa ou àquela direção (obviamente que esse direcionamento circunscreve-se ao âmbito das prescrições da natureza). Estamos, então, diante do princípio da formação autônoma do educando. É preciso que o amor próprio do professor deixe sempre algum espaço para o seu; é preciso que ele possa pensar: eu compreendo, eu entendo, eu ajo, eu me instruo (ROUSSEAU, 1999, p. 329). Como aludimos a pouco, esse princípio não exclui a participação do preceptor, visto que não se pode prescindir de um planejamento no processo educativo. A educação autônoma não significa assistematicidade, pois há objetivos e metas a alcançar. Abstrair da necessidade do planejamento significa espontaneismo e esse é um adjetivo absolutamente estranho à educação rousseauniana. Então, para que o preceptor articule esse plano e conduza o aluno a aprender por si mesmo, é imprescindível a posse de um conhecimento profundo do educando. Isso então nos leva a outro princípio, manifesto da seguinte forma: Começai, pois, por melhor estudar vossos alunos, pois com toda a certeza não os conheceis (ROUSSEAU, 1999, p. 4). Outro princípio importante da educação de Rousseau é o da contextualização do aprendizado. Esse princípio se mostra conflitante com as práticas pedagógicas de sua época, as quais nada resultavam além da simples retenção de conteúdos na memória. Criticando essa educação tagarela como diz Rousseau, ele aconselha: Não deis a vosso aluno nenhum tipo de lição verbal. Ele deve receber lições somente da experiência;… (ROUSSEAU, 1999, p. 89).
E mais à frente reforça esse princípio com as seguintes palavras: Vossas lições devem consistir mais em atos do que em palavras, pois as crianças facilmente se esquecem do que disseram e do que lhes dissemos, mas não do que fizeram e do que lhes fizemos (ROUSSEAU, 1999, p.101). Se as lições verbais são inadequadas, então o que assegurará a participação do preceptor no aprendizado do aluno? Só resta uma opção: participar com ele nas experiências de construção de seu conhecimento. Essa exigência de aprender com o aluno constitui-se em mais um princípio educacional rousseauniano assim expresso: Fazei deles vossos iguais para que se tornem vossos iguais e, se não podem ainda elevar-se até vós, descei até eles sem vergonha e sem escrúpulos (…) compartilhai seus erros para corrigi-los (ROUSSEAU, 1999, p. 326).
São muitas as variações dos princípios fundamentais da educação rousseaunianaapresentados no Emílio. Esse artigo não comporta discutir uma a uma, essa é uma tarefa digna de um trabalho mais extenso. Com relação à posição desses princípios, frente ao contexto ideológico contemporâneo à sua formulação, temos que é de radical antagonismo. A educação formulada por Rousseau se posiciona na contramão do paradigma de dominação da época. Em plena sintonia com a tradição do Antigo Regime o educador de então constituía o centro do processo ensino-aprendizagem. Em uma analogia com a revolução copernicana, os princípios da educação de Rousseau configuram-se em bases sólidas à subversão da ordem de então e, assim, desloca o centro do processo educativo do educador para o educando. Por conseguinte, antes de pretender que a criança se adapte à expectativa do educador, este, deve, ao contrário,
ajustar as lições ao nível de entendimento, bem como, aos interesses e aptidões de seusalunos. Essa exigência impõe, ao educador, a condição de eterno aprendiz. Rousseau nos adverte que antes do preceptor se pôr a dar lições é preciso aprender com o aluno.
Homem prudente, considerai por longo tempo a natureza, observai bem vosso aluno antes de lhe dizer a primeira palavra; deixai primeiro o germe de seu caráter em plena liberdade para se mostrar, não o constranjais a seja o que for, para melhor vê-lo por inteiro. (ROUSSEAU, 1999, p. 92).
Além de Rousseau combater a ideia de que a teoria e a prática educacional, junto à criança, deviam girar em torno dos interesses do adulto e da vida adulta, o mesmo mostrou que as necessidades da criança e as condições de seu desenvolvimento, são peculiares a sua faze de desenvolvimento. Ou seja, que cada fase de vida: infância, adolescência, juventude e maturidade são portadoras de características próprias, respeitando a individualidade de cada um. A criança não é um adulto em miniatura. Desta forma, o tipo de tratamento dispensado às crianças, marcado pela rigidez e falta de consideração por sua individualidade precisava ser repensado. Esse repensar transparece em toda pedagógica desenvolvida a partir do pensamento pedagógico Rousseauniano. Essa breve consideração sobre os princípios da pedagogia de Rousseau nos convida a refletir sobre nossas práticas pedagógicas. É inacreditável que após séculos de estabelecimento de princípios de validade universal, ainda encontramos instituições educacionais cujo procedimento pedagógico parece ignorar, por completo, esses fundamentos tão discutidos e aprimorados durante séculos por pensadores que beberam da fonte intelectual Rousseauniana.