A Leitura que Transforma

A Leitura que Transforma

Autora: Márcia Patrícia Barboza de Souza

RESUMO
Qual a importância do ato de ler? Que efeitos a leitura pode causar à vida de uma pessoa? A leitura deve ser um ato solitário ou compartilhado? Essas e outras questões se fazem presentes quando o assunto envolve a leitura em toda a sua dimensão. Assim, busco através das reflexões trazidas neste trabalho, respostas para tais questionamentos e também mostrar um breve panorama de difusão da leitura nos dias atuais, como vem sendo seu trabalho em sala de aula e a importância das rodas de leitura no processo de interação autor/leitor/texto e na construção de sentidos. O estudo apóia-se em autores como Freire (1988), Bakhtin (1992), Zilberman (2007) e Larrosa (2004).
“Vamos fazer do Brasil um país de leitores”
O slogan fez parte de uma campanha de difusão da leitura no ano de 2002; foi divulgado em escolas através de cartazes (inclusive um deles transformado em quadro e colocado na biblioteca de minha escola). A crítica é: como formar leitores em um país marcado pela carência cultural e pela dificuldade econômica em adquirir livros? Pessimismos à parte, trabalhemos com os fatos. A realidade da leitura no Brasil mostra uma grande deficiência na formação de leitores; atualmente, em nosso país, há um número significativo de analfabetos funcionais – prova disso é o resultado do PISA/2000 e da PROVA BRASIL/2005, que apontaram o nível baixo dos alunos em interpretação textual, ou seja, alunos que lêem, mas não conseguem abstrair a mensagem do texto.

É certo que vários fatores colaboram para esse panorama: famílias de não leitores, custo alto dos exemplares, escassez de bibliotecas, acervos desatualizados e o papel da escola, em especial o do professor, no trabalho com a leitura em sala de aula. Este último, aliás, tem sido alvo de críticas de diversos autores, pois para muitos especialistas, a leitura vai mal porque a escola está mal. Em muitas não há o espaço privilegiado para se realizar a leitura: a biblioteca; quando há tal espaço, conta-se com acervos desatualizados e profissionais mal preparados ou inexistentes. Um fato triste deve ser registrado: quando o número de alunos não suporta o número de salas, em uma escola, apela-se para o espaço da biblioteca, transformando-a em sala de aula, excluindo-a do cenário escolar.
Ainda referindo-me à escola, constata-se uma maior preocupação em incentivar a leitura aos alunos da educação infantil e séries iniciais com cantinhos da leitura, hora do conto, etc, o que é muito válido, pois é através dos primeiros contatos que a criança pode se inserir no mundo fantástico da leitura e daí vai, aos poucos, descobrindo outras leituras e se tornando um sujeito leitor. No entanto, verifica-se que todo esse trabalho de inserção ao mundo da leitura prazerosa se esvai do 5º ano em diante, quando os professores começam a adotar como atividades fichamentos de leitura, tornando o ato de ler meramente obrigatório, com histórias muitas vezes desinteressantes para os alunos.
Considerando que, em muitos casos, o livro didático é o único instrumento usado para a leitura e que a escola seja o único espaço de contato com a leitura, esta deve viabilizar um trabalho pedagógico apresentando a diversidade de gêneros discursivos existentes, bem como seus objetivos. Deverá também oferecer condições para que seus alunos despertem para o gosto e o compromisso da leitura, mostrando a eles o caráter desafiador do ato de ler. Assim, despertando-os para uma leitura crítica do escrito.
O papel de mediador desempenhado por nós professores não é tarefa fácil, aliás, esse trabalho não deve ser tarefa exclusiva do professor de Língua Portuguesa, em todas as disciplinas ele deve ser desenvolvido. A função de cada um de nós, professores e professoras, independente da área curricular, é promover a leitura de textos que devam ser aprofundados para que todos vivenciem o encantamento da descoberta de sentidos trazido pela leitura, dialogando com a realidade e formando para a cidadania. Seguindo o pensamento de Paulo Freire (1988), quanto mais um povo se torna consciente de sua história, mais facilmente perceberá as dificuldades socioeconômicas e culturais da realidade em que vivemos e, conseqüentemente, estará apto para o enfrentamento e a libertação.
Segundo Jorge Werthein (2007) – representante da UNESCO no Brasil de julho/1996 a setembro/2005 – é nesse contexto que se encaixa o sentido pedagógico da leitura – o saber ler – ler para garantir a autonomia intelectual, considerando a escola o lócus para a aquisição dessa leitura crítica. Mas, para que isso se estabeleça, é necessário que o professor também seja um leitor.
De acordo com Zilberman (2007), raramente a escola provoca lembranças prazerosas de leitura em seus alunos; com atividades pedagógicas entediantes, a leitura parece ficar “do lado de fora” porque os professores não a incorporam ao universo do ensino.
Novamente o professor, essa figura tão marcada! Mais uma vez a culpa recai sobre ele, mas é importante destacar que algumas condições adversas o impedem de ser um leitor: baixos salários que levam a um trabalho em dois ou até três turnos, com funções concomitantes, não lhes sobrando tempo para ler, e muitas vezes sem dinheiro para adquirir livros. Daí seu trabalho é cercado de fragmentação e improvisação do ensino da leitura na sala de aula. A isso se acrescenta outros fatores que ultrapassam a competência do professor e podem impedir um efetivo trabalho de leitura na escola: grande número de pessoas que nem chegam aos bancos escolares, alto índice de evasão e repetência, além de precária infra-estrutura e pouca ou nenhuma participação da família na formação do aluno-leitor.
Espaços de leitura
É fato considerar a escola o principal lugar disseminador da leitura, bem como o espaço das bibliotecas que, representam um número pequeno em relação aos habitantes (de acordo com dados do Ministério da Educação e Cultura – MEC há 4000 bibliotecas públicas para cada 40.000 habitantes, enquanto a recomendação da UNESCO é que se tenha 1 biblioteca para cada 12.000 habitantes), possui acervos desatualizados e está distante das camadas populares.
Porém, outros lugares já são vistos como espaços de leitura: parques, hospitais, penitenciárias, sindicatos, igrejas, centros comunitários e a nossa própria casa. Há de se considerar também projetos inovadores como o ‘trem-biblioteca’, no sul do país e os ‘bibliobarcos’ na Amazônia e Rio São Francisco.
Programas de incentivo à leitura freqüentemente ‘invadem’ o cenário da escola. São programas que distribuem livros às crianças, como o ‘Literatura em minha casa’(2007), numa tentativa de levar a leitura à casa dos estudantes, numa forma de democratizar o acesso à leitura. Segundo dados da Câmara Brasileira do Livro (2007), o Brasil consome em média cerca de 2,3 livros por pessoa (incluindo os livros didáticos distribuídos pelo MEC), enquanto a média de países desenvolvidos é de 6 a 10 livros anualmente, sendo a maior parte do material adquirido em bancas de jornal. Outros projetos como o ‘Programa Nacional de Biblioteca na Escola’(oferecendo material de apoio a alunos e professores de escolas públicas) e o ‘Pró-leitura na formação do professor’ (ação conjunta entre MEC e França) são exemplos de iniciativas que fomentam a leitura em nosso país. Devem-se registrar também programas com o apoio de instituições como a Petrobrás (Leia Brasil), o Banco do Brasil (Rodas de Leitura) e da Volkswagem (Formação de Mediadores de Leitura).
Programas de formação para mediadores de leitura são de suma importância, já que proporcionam orientação para realização de rodas de leitura e servem para fomentar a cultura e a valorização da leitura na escola e em outros espaços da comunidade. Tais programas são realizados com o objetivo de difundir a leitura a partir da convivência em um ambiente letrado, contando inclusive com o financiamento de empresas, num sistema de parcerias. Atualmente, devido ao avanço da tecnologia, pode-se ver a disponibilização de livros na Internet, alguns com acesso gratuito, outros de acesso restrito, no entanto ambos apresentam mais uma forma de universalizar a leitura.

As Rodas de Leitura
A memória me remete ao tempo de infância, quando lia meus livrinhos (os quais guardo até hoje em uma estante) várias vezes até decorar toda a historinha. Fazia isso por prazer, porque gostava de olhar as figuras e já saber o que estava escrito. Mais adiante me lembro da adolescência, na verdade nem me lembro dos livros que li nessa fase, sei que os lia na escola, junto com outros colegas, em voz alta para todos acompanharem. Depois preenchíamos uma folha com algumas perguntas sobre o livro e só. ‘Só’ no sentido ambíguo da palavra. A leitura pode ser esse equívoco: atividades sem reflexão, somente obrigação em cumprir tarefas ou muitas vezes alguém sozinho, mergulhado nos escritos, concentrado no silêncio do ato de ler. Porém, ela não deve ser vista somente como característica solitária, ao contrário, a companhia de alguém pode ser bem estimulante, pode gerar conflitos de opiniões em uma discussão harmoniosa, sendo uma mesma história percebida através de ângulos diferentes.

Dessa forma os grupos de leitura apresentam características positivas e oportunizam momentos de encontros e reflexão, e fazem com que possamos conhecer melhor o outro, assim como aponta Larrosa (2004) essa é uma das transformações que a leitura pode proporcionar. É interessante destacar que nesse trabalho coletivo e interativo com a leitura podem ser discutidos textos literários, filosóficos, científicos, teológicos, dependendo dos interesses dos grupos. As rodas de leitura trabalham com o ato de ler em sua essência: ler com prazer, ler para entender o escrito, ler para introduzir-se no mundo imaginário e trazê-lo à realidade, numa espécie de descoberta com a verdade. Assim, não se pode negar que a leitura em grupo amplia e ordena nossos conhecimentos.
A literatura nos mostra que as rodas de leitura contribuem de forma significativa na formação de novos leitores, melhoram a participação, o espírito crítico, a atenção e a criatividade do sujeito. O objetivo das rodas de leitura é compreender a essência do escrito num processo dialógico da linguagem, assim como aponta Bakhtin (1992). A leitura implica construção de sentidos, pois não se resume apenas em decodificar a mensagem, mas também absorver os múltiplos sentidos que ela proporciona.
Por isso é imprescindível que o leitor compartilhe dos sentidos do autor e seja capaz de construir os seus próprios. Sentidos estes construídos no momento de interação que acontece entre texto e leitor, daí a importância que este tem em reunir seus conhecimentos sobre os gêneros discursivos para ser capaz de formular sentido nessa interação com o autor.
Nas rodas de leitura é importante considerar a colaboração sem que haja a competição, pois uma vez que o objetivo do grupo seja constituir uma troca, a presença de alguém que queira se tornar o ‘dono da palavra’ pode inibir os demais participantes e assim não permitir a interação. Para que isso não aconteça, o leitor-guia deve ser experiente e promover a igualdade de participação.
As rodas de leitura se caracterizam por seu perfil de ‘compartilhamento’, no qual os participantes se reúnem em torno de um leitor-guia. Além disso, devem oferecer um ambiente favorável ao grupo, com um número médio de freqüentadores, apresentando assuntos diversificados ou estudos aprofundados de um mesmo tema; também devem ser considerados o tempo e a intertextualidade, todos critérios que auxiliam na ampliação dos horizontes de leitura pelos não-iniciados.
Reafirmando o pensamento de Yunes (1999, p.21), “ler em círculo não é novo: novo é o uso do círculo para aproximar os leitores na troca de suas interpretações”.

Texto e leitor – interação e identificação
A interação texto/leitor pode provocar no indivíduo uma identificação com seu íntimo, muitas vezes, revelando-se a si mesmo.

A comunicação é essencial na vida do ser humano e especificamente na comunicação escrita a possibilidade do diálogo imediato não se torna possível devido ao tempo em que o texto foi produzido e sua recepção pelo leitor. Daí a necessidade de se construir sentidos por parte desse leitor, estabelecendo uma dinâmica de interação com o texto, de modo a transformar o entendido e transformar-se a si mesmo. Assim como aponta Freire (1988), “a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo, mas por uma certa forma de ‘escrevê-lo’ ou ‘reescrevê-lo’, quer dizer, de transformá-lo através de nossa prática consciente’.
Lemos em diferentes situações do nosso cotidiano; lemos para colher informações, para adquirir conhecimentos, para desenvolver atividade do dia-a-dia, para escrever, lemos pelo simples fato de ler, lemos… Portanto, a função social que a leitura desempenha alcança uma dimensão que nos faz desenvolver habilidades cognitivas e nos leva ao domínio de diferentes competências. Os próprios Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN (1997) propõem que sejam oferecidas práticas de leitura que propiciem a reflexão e levem o leitor à construção desses sentidos.
A leitura não pode ser vista apenas como um processo de decodificação, mas como um processo dialógico marcado pela polissemia trazida pelo texto. Ela representa uma soma. Ler é compartilhar sentimentos, é dividir conhecimentos, é somar-se.

Considerações finais
Historicamente a construção de conhecimentos ficou a cargo das escolas, e a leitura foi sendo substituída por aulas expositivas, resumos de obras, fragmentos de textos, levando o leitor a ler pela imposição e não por prazer.

Entretanto, por tudo o que já foi exposto, é fato constatar que a leitura pode gerar seres humanos conscientes, curiosos e críticos. Também pode se tornar um instrumento de conquista de liberdade para o homem, quando amplia a visão de mundo, gera transformação, compreende o cotidiano, tira da alienação. Ao ser incorporada, a leitura pode promover a construção de conhecimentos, a formação da cidadania, e um novo estilo de vida; seguindo o pensamento de Larrosa (2004) a leitura traz um outro olhar do mundo (talvez para alguns isso cause uma profunda tristeza por reconhecer e indignar-se, sem poder para mudar a realidade).

Vejo nos círculos de leitura ou qualquer outro projeto de difusão da leitura, um espaço, um modo de propiciar ao indivíduo a oportunidade de sair de sua situação de ‘oprimido’ (remetendo a Paulo Freire) e (inter) agir na sociedade na qual está inserido.
Todos esses fatores acabam por contribuir na formação da identidade do leitor. Fazendo uma analogia com o ‘mito da caverna’, a leitura é a luz que dá a compreensão do mundo.
Referências bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
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ZILBERMAN, R. Disponível em www.leiabrasil.org.br. Acesso em 10 ago 2007.

Márcia Patrícia Barboza de Souza – Mestranda em Educação na Universidade Católica de Petrópolis; Especialista em Pesquisa e Docência no Ensino Superior e Língua Portuguesa; Professora de Língua Portuguesa da rede municipal de ensino de Juiz de Fora e da rede estadual de Minas Gerais.