O Brinquedista e a Dimensão Lúdica
O conjunto de ações do brinquedista é voltado para a criação das melhores condições para um brincar de qualidade: ambiente atrativo e acolhimento afetuoso; mas o que diferencia o seu comportamento de outros adultos, é a visão do brincar que ele transmite ao longo do seu desempenho, valorizando a atividade como um todo, sempre baseada no prazer da criança. Se o jogo é abandonado, não vai forçar a criança a termina-lo. Não emite julgamento sobre a escolha que for feita: brincar com a Barbie não é menos importante do que jogar um dominó. Desta forma, o bom brinquedo não pode ser definido. O brinquedista situa-se em relação a outras dimensões alem da aprendizagem.
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Na Brinquedoteca, a dimensão lúdica deve ser privilegiada e, para que isso aconteça, o brinquedista precisa ter a compreensão do fenômeno que extrapola o brincar e que não tem necessariamente, que provocar aprendizagem. Sua ligação com a estimulação do desenvolvimento é tão global que não pode ser considerada por aspectos específicos. Tem a ver com alma, com poesia, com emoção, com amor, não como sentimento de um para com outro, mas como sensação, como uma forma respiração que é absorção da experiência que está sendo vivida, como satisfação de um anseio existencial.
A maioria das definições sobre o que é BRINCAR, é reduzida, não alcança todas as suas possibilidades, não contempla sua transcendência; são simplórias na sua preconceituosa visão científica. Sabemos que a criança brincando aprende, sabemos que desenvolve potencialidades, sabemos como constrói conhecimentos no seu brincar mas, é hora de lembrar que, a Brinquedoteca não é uma sala de aula. A ludicidade gera um tipo especial de convivência.
Antes de poder ser brinquedista, o candidato tem um longo caminho a percorrer, que começa sobre uma reflexão profunda sobre a abrangência do brincar. Tentando explica-lo, tentando descrever os horizontes que ele atinge, chegaremos a aspectos difíceis de definir conceitualmente. Esbarraremos em limites que, como a margem de um rio, nos fazem perceber que existe alguma coisa do outro lado. É preciso tentar explicar o brincar para perceber sua abrangência e, para fazer isto corretamente, é preciso ter alma de poeta. Terminamos então com um poema.Do poeta português Miguel Torga,
Brinquedo
Foi um sonho que eu tive
Era uma grande estrela de papel
Um cordel
E um menino com uma pipa
O menino tinha lançado a estrela
Com ar de quem semeia uma ilusão
E a estrela ia subindo, azul e amarela,
Presa pelo cordel à sua mão
Mas tão alto subiu
Que deixou de ser estrela de papel
E o menino, ao vê-la assim, sorriu
E cortou-lhe o cordel.
Nylse Cunha
Bibliografia
- Brougere, Gilles e Roucus ,Nathalie – Universidade de Paris 13 – 2003
- Le metier de ludothecaire – Pesquisa coordenada por Gilles Brougere &
- Nathalie Roucus , Universidade de Paris 13 – 2003
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O Brinquedista e a Dimensão Lúdica |
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Brinquedoteca: a valorização do lúdico no cotidiano infantil da pré-escola
RESUMO
O fenômeno da brincadeira infantil é complexo e está presente em todas as culturas, cada qual com suas especificidades. Nesse sentido, a cultura lúdica é um importante fator na determinação das brincadeiras. O presente artigo tem como objetivo sintetizar conceitos como cultura lúdica, brincar, brincadeira, bem como demonstrar a importância do brincar para o desenvolvimento humano, partindo dos pressupostos da psicologia histórico-cultural, especificamente de Vygotsky. Também é feito relato de experiência em uma brinquedoteca instalada em uma creche filantrópica. A brinquedoteca atende aproximadamente a 150 crianças de três meses à seis anos. Por meio da análise teórica e do relato de experiência, pode-se concluir que a brinquedoteca é um espaço que valoriza um aspecto fundamental do cotidiano infantil e constitui-se como um espaço privilegiado para a produção de conhecimento sobre a infância e o desenvolvimento infantil.
Palavras-chave: cultura lúdica; brincadeira; brinquedoteca; pré-escola.
ABSTRACT
The phenomenon of children’s play is complex, and it is present in every culture, each with its own specificities. In this sense, playful culture is an important factor in determining the types of play in certain life periods. The purpose of this paper is to synthesize concepts such as playful culture and playing behavior, as well as to point out the importance of playing for human development. It has been taken as theoretical background the premises from historical-cultural psychology, specifically Vygotsky’s. In addition, the paper includes a report of the experience in a toy library situated in a nonprofit day care center in Florianopolis. The toy library assists approximately 150 children from 0 to 6 years-old. Through both the theoretical analysis and the reported experience, it has been conclude that the toy library is a space that promotes a fundamental aspect in children’s everyday lives, and it constitutes a privileged space for producing knowledge regarding childhood and children’s development.
Keywords: playful culture, playing behavior, toy library, kindergarten.
Introdução
A brincadeira é um comportamento presente em todas as culturas, cada qual com suas especificidades (BROUGÈRE, 1998; PEDROZA, 2005). Por meio da brincadeira a criança aprende comportamentos, constrói conhecimento, expressa emoções e sentimentos e significa para si a cultura em que está inserida. Pesquisar sobre esse comportamento tão complexo e tão básico ao ser humano tem-se demonstrado um desafio para as áreas do conhecimento. Todavia, já é possível sintetizar o conhecimento existente e propor atuações condizentes com o mesmo de maneira a atender às necessidades de espaços ao brincar infantil. O presente artigo tem como objetivo apresentar alguns conceitos sobre brincar e brincadeira e também trazer o relato de experiência de um projeto de extensão desenvolvido em uma brinquedoteca instalada em uma creche filantrópica.
Por princípio, é necessário definir o que se entende por cultura e por cultura lúdica para, então, compreender a brincadeira no contexto da infância.
Cultura lúdica: conceito e construção
Para fins deste artigo, por cultura entende-se: “organização estrutural de normas sociais, rituais, regras de conduta e sistema de significados compartilhados pelas pessoas que pertencem a certo grupo” (VALSINER, 1998 apud CONTI; SPERB, 2001), ou seja, são regras vagas e genéricas de comportamentos, de crenças, de valores, que possibilitam uma organização da vida cotidiana em uma sociedade.
Cada cultura possui suas especificidades. Segundo Brougère (1998), cada cultura irá determinar o que serão comportamentos típicos de brincadeira e comportamentos que não serão de brincar. Por exemplo: uma tribo indígena pode considerar que bonecas não são para brincar, mas para rituais religiosos, enquanto uma sociedade industrializada produz milhares de bonecas para as crianças brincarem. Essa determinação nem sempre é clara e precisa; no entanto, é válida na medida em que irá influenciar a maneira como as crianças brincam, com o que brincam, com quem brincam e onde brincam.
Brougère (1998) prossegue a análise afirmando que a cultura existe anteriormente ao jogo, pressupondo esquemas que o tornam possível. A criança passa, então, a comportar-se de maneira a dominar esses esquemas, conforme o seu desenvolvimento, engajando-se nas atividades lúdicas. “O desenvolvimento da criança determina as experiências possíveis, mas não produz por si mesmo a cultura lúdica” (BROUGÈRE, 1998, p. 27), ou seja, o conjunto dos fatores biológicos, psicológicos e as interações socais constitui a base para a construção de uma cultura lúdica individual e também geral.
A cultura lúdica compreende esquemas de comportamento que permitem iniciar a brincadeira. Esses esquemas são em geral vagos e imprecisos; no entanto, permitem a organização da brincadeira. Os esquemas estão pautados na observação da complexa realidade social, na atividade de brincadeira, nos materiais disponíveis e na cultura. A cultura lúdica não existe como uma entidade, mas é produzida pelos sujeitos que participam da mesma, produto de interação social (VYGOTSKY, 1991; BROUGÈRE, 1998).
Assim como a cultura, a cultura lúdica também é modificada de acordo com o contexto. Brougère (1998) aponta alguns dos fatores que podem influenciar na mudança da cultura lúdica: hábitos sociais, condições climáticas, condições especiais, idade, sexo, ambiente em que se encontra a criança e a concepção de infância. Além desses, mudanças em nível estrutural da sociedade e novas significações do real também constituem fatores relevantes para mudanças.
A cultura lúdica possui tanto característica universal como individual. Embora alguns comportamentos, tais como a brincadeira, possam estar presentes em todas as culturas, cada um é sujeito ativo na maneira de como irá significar esse e outros comportamentos no seu dia a dia (BROUGÈRE, 1998). A criança é sujeito ativo ao construir a sua cultura lúdica brincando, significando para si a cultura no geral e também estabelecendo novas relações com o ambiente.
Partindo de uma exploração do conceito de cultura lúdica, torna-se necessária também a definição de brincar e de brincadeira, entendendo-a a partir do contexto da cultura em que está inserida.
Conceitos de brincar e brincadeira
Definir conceitos como brincar e brincadeira não é uma tarefa fácil como já foi apontado na literatura (KISHIMOTO, 1999; CONTI; SPERB, 2001; CORDAZZO, 2003). No entanto, já existem características desses fenômenos sistematizadas que auxiliam na construção de uma definição.
No presente estudo, parte-se do pressuposto de que a definição de um fenômeno precisa considerar o contexto histórico e cultural de uma sociedade. Nesse sentido, Peters (2009, p.17) aponta que “as diferentes visões sobre infância são social e historicamente construídas e variam conforme as formas de organização social de cada época”. Isso significa dizer que, além de definir conceitos, é necessário compreender de que maneira a sociedade concebe a infância. A própria língua, forma de manifestação cultural, direciona para diferenciações entre jogo e brincadeira e para definições dos mesmos, conforme apontam Brougère (1998), Cordazzo (2003) e Cordazzo e Vieira (2007).
Brincar é um comportamento e não deve ser entendido apenas como uma resposta a um estímulo, mas como uma relação estabelecida com um contexto social, implicado dentro de um sistema cultural. Ao comportar-se, a criança está alterando o contexto e a si mesma. Assim, o comportamento de brincar precisa de um local para ocorrer, de certos estímulos anteriores e trará consequências a curto, médio e longo prazo para o sujeito que se comporta e para o ambiente em que o faz. Ao definir brincar e brincadeira, faz-se necessário compreendê-los dentro deste sistema de relações complexas em que estão inseridos.
No dicionário comum, pode-se encontrar que brincar é definido como “divertir-se; gracejar” (BUENO, 1994, p. 197) e brincadeira “divertimento, sobretudo entre crianças” (BUENO, 1994, p. 197). Essa característica divertida, prazerosa é apenas uma das características do brincar. No entanto, existem outras características, como aponta a literatura específica. Por exemplo, Kishimoto (1999, p. 21) define brincadeira como sendo “a ação que a criança desempenha ao concretizar as regras do jogo, ao mergulhar na ação lúdica”. Por sua vez, Peters (2009, p. 38) aprofunda a definição de brincadeira no seguinte sentido: “o resultado da ação que a criança desempenha ao concretizar e/ou re-criar suas regras, estabelecendo ou não relação com um objeto, ao entrar na ação lúdica.”. Significa que a brincadeira é uma atividade que resulta do comportamento de brincar, sendo necessária a constituição de uma situação imaginária/lúdica.
Cordazzo e Vieira (2007, p. 93) apontam outras características: “uma atividade não estruturada que gera prazer, que possui um fim em si mesma e que pode ter regras implícitas ou explícitas”. Partindo dessa caracterização, a brincadeira parece constituir um fenômeno cujo objetivo está no processo de brincar mais do que em um produto final para quem está brincando, ou seja, o brincar pelo brincar, a brincadeira possuindo um fim em si mesma (KISHIMOTO, 1999; MARTINS; VIEIRA; OLIVEIRA, 2006; CORDAZZO; MARTINS; MACARINI; VIEIRA, 2007).
Vygotsky (1991) enfatiza que o prazer da brincadeira não é suficiente para definí-la. Ou seja, isso significa dizer que a diversão, ou prazer de brincar, é uma dimensão importante do fenômeno brincadeira, mas que, no entanto, não é a central. Para a criança, o prazer gerado pela brincadeira constitui-se como mais importante, mas para os estudiosos este não deve ser o ponto principal, mas a constituição de uma situação imaginária e das regras. Nesse sentido, a construção de regras é um ponto central para definir brincadeira. Assim como Vygotsky (1991) e outros autores (KISHIMOTO, 1999; VOLPATO, 2002), no brincar a criança constrói regras para o funcionamento da brincadeira, regras que advêm do ambiente em que a criança está inserida e da cultura em que se encontra. As regras, em maneiras de como agir ao brincar, são construídas pelas próprias crianças brincando, interagindo com outras crianças e observando a realidade.
Portanto, em termos de estrutura, pode-se dizer que o brincar envolve aspectos cognitivos, afetivos e sociais. Contudo, além de entender o que é a brincadeira e como ela se estrutura, é necessário também compreender a funcionalidade desse comportamento para o indivíduo, principalmente durante as fases iniciais do desenvolvimento, onde ocorre com maior frequência e intensidade.
Função da brincadeira para o desenvolvimento humano
As consequências do brincar são inúmeras para o desenvolvimento humano. Lima (1994, 1995, apud PETERS, 2009), defende que a brincadeira é uma necessidade vital para os seres humanos, por meio da qual a criança constrói conhecimentos sobre a realidade em que está inserida. Por outro lado, Froebel, importante filósofo da Educação, também compartilha dessa visão, ao afirmar que a criança pequena cresce como ser humano a partir da descoberta do seu corpo, dos sentidos que descobre ao brincar consigo mesma (KISHIMOTO, 1998a), ou seja, quando está descobrindo o seu próprio corpo, a criança pequena está desenvolvendo-se e construindo conhecimento sobre ela mesma.
Vygotsky (1991) entende a brincadeira como um meio pelo qual a criança supre algumas de suas necessidades, sendo também um meio de aprendizado, de desenvolvimento da imaginação, da compreensão da realidade, do domínio de regras e da construção de uma situação imaginária, base para o pensamento abstrato adulto. Por sua vez, Conti e Sperb (2001) enfatizam que a função da brincadeira para o desenvolvimento infantil são as possibilidades de interações sociais e as significações que a criança dá aos aspectos da realidade por meio do brincar. Nesse sentido, Friedmann (1998a) considera a brincadeira como um sistema integrador da vida social da criança, sendo transmitida de geração a geração, mudando o conteúdo, mas não o formato.
Segundo Amaral (1998), Dewey, outro importante filósofo educacional, ressalta a importância da brincadeira imitativa e do contato com crianças mais velhas para a criança pequena apreender as regras sociais. Ou seja, ao imitar comportamentos de adultos enquanto brinca a criança está compreendendo como funciona a sociedade e pode aprender os mais variados hábitos e valores, dependendo do ambiente em que se encontra, incluindo nesse as crianças mais velhas e os adultos e o tipo de relação que estabelece com o mesmo. No caso de Piaget, conforme afirma CORDAZZO (2003), o autor tem enfoque no aspecto cognitivo da brincadeira, ao considerá-la como uma função biológica para o desenvolvimento cognitivo, especificamente da inteligência e também como um meio de socialização da criança.
Pedroza (2005, p. 64), partindo de um enfoque psicanalítico afirma que “a brincadeira é universal e é própria da saúde, facilita o crescimento, desenvolve o potencial criativo e conduz aos relacionamentos grupais”; também proporciona a constituição do sujeito, o desenvolvimento da linguagem, da imaginação e da criatividade (VYGOTSKY, 1991; FRIEDMANN, 1998a; KISHIMOTO, 1999; PEDROZA, 2005). A brincadeira também pode ser uma importante fonte de comunicação, pela qual a criança exprime sentimentos como angústia, ansiedade, dor, alegria, agressividade, novas experiências e contatos sociais (CORDAZZO, 2003; CORDAZZO; VIEIRA, 2007).
Portanto, conclui-se que a brincadeira assume diversas funções para o desenvolvimento da criança. Pode-se afirmar que a função da brincadeira para a criança está em criar condições para o seu desenvolvimento integral (social, cognitivo, emocional, e psicomotor), partindo de objetos concretos, situações imaginárias e interações sociais, estabelecendo relações com o mundo e construindo conhecimento sobre ele e sobre si mesma.
Um autor que explora a relação do sujeito com a cultura em que está inserido é Vygotsky, que considera que a criança apropria-se dos significados da cultura como uma forma de desenvolvimento das funções psicológicas superiores, constituindo o brincar em uma situação privilegiada para esse desenvolvimento. Partindo da função da brincadeira para o desenvolvimento infantil, Vygotsky (1991) explora duas dimensões da brincadeira: a situação imaginária e a construção das regras, como partes integrantes do processo de brincar.
O brincar para Vygotsky
A criança ao brincar não está simplesmente imitando os comportamentos dos adultos, está em um processo de significar para si as regras sociais e de comportar-se como se fosse adulto. Nesse sentido, a brincadeira tem duas dimensões importantes: uma que envolve situações imaginárias e outra as regras. Vygotsky (1991) chama a atenção para esses dois aspectos por julgá-los os mais relevantes para o desenvolvimento humano que o brinquedo pode propiciar.
Vygotsky entende que a função da brincadeira é atender às necessidades da criança, necessidades essas entendidas de uma maneira ampla: “(…) inclui tudo aquilo que é motivo para a ação” (VYGOTSKY, 1991, p.105). As crianças pequenas (até três anos de idade) têm suas necessidades atendidas quase imediatamente; no entanto, com o crescimento essas necessidades mudam e elas deixam de ser atendidas imediatamente. Então, nesse tensionamento o brinquedo surge como uma alternativa ao suprimento das necessidades pré-escolares. Vygotsky explica que: “(…) a criança em idade pré-escolar envolve-se num mundo ilusório e imaginário onde os desejos não realizáveis podem ser realizados, e esse mundo é o que chamamos de brinquedo” (VYGOTSKY, 1991, p.106).
A criança pequena está presa à situação concreta, real; já a criança em idade pré-escolar cria uma situação imaginária, além do real, podendo alterar os significados das ações. É essa capacidade de significação que Vygotsky (1991, p. 118) privilegia no brincar: “A essência do brinquedo é a criação de uma nova relação entre o campo do significado e o campo da percepção visual – ou seja, entre situações do pensamento e situações reais”. O nuclear da situação imaginária é a simbolização, a capacidade da criança em interagir com um objeto, dando-lhe um significado de outro objeto. Vygotsky afirma que este é o momento da “primeira manifestação da emancipação da criança em relação às restrições situacionais” (VYGOTSKY, 1991, p. 113). Esta situação imaginária é a base para o desenvolvimento do pensamento abstrato no adulto.
Outro ponto nuclear para Vygotsky no brinquedo são as regras. Ao brincar a criança está comportando-se da maneira como os papéis estão dispostos na sociedade; no entanto, não é só reprodução de comportamentos, a criança ao brincar é ativa e está significando para si aquilo que está na cultura. Sobre as regras de comportamento, Vygotsky conclui que “sempre que há uma situação imaginária no brinquedo, há regras” (VYGOTSKY, 1991, p. 108), e são essas regras que irão originar a relação da criança com o objeto, ou seja, o comportamento em relação ao brinquedo.
Um dos principais atributos do brinquedo é o autocontrole. Por meio do brinquedo a criança aprende a lidar com os seus impulsos de agir espontaneamente e com as regras do brinquedo. Assim sendo, “o atributo essencial do brinquedo é que a regra torna-se um desejo” (VYGOTSKY, 1991, p. 113), e o prazer vem da satisfação dessas regras. A criança dá, então, preferência em concretizar as regras e criar novas, em detrimento do brinquedo em si.
No brincar a criança comporta-se além do modo habitual para a sua idade, ou seja, uma Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) é criada. A ZDP é um conceito fundamental da teoria vygotskyana e consiste na distância entre o nível de desenvolvimento real e o nível de desenvolvimento potencial, isto é, a distância entre aquilo que a criança consegue fazer sozinha e aquilo que ela consegue fazer com o auxílio de adultos ou companheiros mais habilidosos para a atividade (VYGOTSKY, 1991). No brinquedo a criança pode ser mais do que realmente é, aprendendo novas relações e desenvolvendo-se com as experiências. Ao brincar a criança pode apresentar comportamentos além dos esperados para a sua idade e que, em outras condições, talvez não fossem possíveis, isso porque no brinquedo há uma ZDP, partindo da construção da situação imaginária e das regras do brinquedo.
Mediante tantas contribuições sobre a importância do brincar para o desenvolvimento infantil, perguntas surgem tais como: as crianças de hoje estão brincando? Onde brincam? Quanto tempo despende nessa atividade? A partir desses questionamentos, no próximo tópico iremos apresentar algumas reflexões sobre o espaço da brinquedoteca, que seria um lugar pensado e construído para valorizar o brincar da criança.
Um espaço para o brincar: a brinquedoteca
Autores como Friedmann (1998a) já apontaram que nos tempos atuais as crianças estão brincando menos em comparação com as crianças de 50 anos atrás. Esse fato remete a diversos fatores que alteraram e continuam alterando a sociedade, mais do que isso, a percepção dos indivíduos sobre os valores, regras sociais, crenças. Alguns aspectos aparecem como determinantes dessa mudança: o processo de industrialização dos países, com a produção em massa de produtos, dentre eles os brinquedos; o avanço tecnológico que atinge crianças cada vez mais cedo; a tecnologia dos brinquedos atuais; a concepção de infância atual; a globalização provocando o esquecimento da cultura popular local; a institucionalização das crianças em escolas e a utilização de brinquedos e jogos como instrumentos educativos para “treinar” crianças para a vida adulta (FRIEDMANN, 1998a). Contudo, Friedmann (1998a) aponta como aspecto essencial para as crianças de hoje brincarem pouco: o crescente avanço tecnológico. As interações sociais entre crianças e crianças, e entre crianças e adultos, tão importantes para o desenvolvimento do ser humano, estão em constante desvalorização, em qualidade e em quantidade, devido ao avanço da tecnologia e à utilização da mesma por crianças cada vez mais cedo.
Partindo dessa necessidade, a brinquedoteca surge como uma alternativa ao brincar infantil. Brinquedoteca “é um espaço preparado para estimular a criança a brincar, possibilitando o acesso a uma grande variedade de brinquedos, dentro de um ambiente especialmente lúdico” (CUNHA, 1998, p. 40). A brinquedoteca constitui-se em um ambiente físico dotado com brinquedos variados com finalidade de possibilitar à criança interações por meio do brinquedo e perpetuação de uma cultura lúdica. Schlee (2002) chama a atenção de que a brinquedoteca não pode ser confundida com uma sala de aula, a brinquedoteca deve ser construída com um objetivo claro e com uma finalidade específica.
Sobre essa finalidade específica ou função da brinquedoteca, Friedmann (1998a) aponta ser um meio de descobrir e construir conhecimentos sobre o mundo. Kishimoto (1998b) complementa afirmando que a brinquedoteca incentiva a autonomia e desenvolve a capacidade crítica e de escolha da criança, além de promover o trabalho em equipe, a socialização, o desenvolvimento infantil, a comunicação, a criatividade, a imaginação e o desenvolvimento de atividades lúdicas (KISHIMOTO, 1998b; CUNHA, 1998; MUNIZ, 2000; SANTOS, 2002).
Com base nessa perspectiva, a seguir será apresentado o relato de experiência de um projeto de extensão desenvolvido em uma creche filantrópica.
BrinquedoAção: aprendendo e se divertindo com brinquedos
O projeto “BrinquedoAção: aprendendo e se divertindo com brinquedos” foi implementado em 2005, sendo um projeto de extensão vinculado à Universidade Federal de Santa Catarina. As atividades de extensão são configuradas como atividades básicas da Universidade. Por meio da extensão é possível tornar acessível o conhecimento científico produzido na Universidade e também perceber a realidade social (BOTOMÉ, 1996). Vale ressaltar aqui a importância desse projeto para a Universidade no sentido de cumprir sua função e, para a sociedade, em receber o conhecimento produzido e gerar novos problemas de pesquisa. Além disso, o projeto da brinquedoteca encontra-se integrado com as estagiárias de Psicologia presentes na creche e com as pesquisas desenvolvidas pelo departamento de Psicologia no local.
O projeto “BrinquedoAção: aprendendo e se divertindo com brinquedos” constitui na implementação e na manutenção de uma brinquedoteca em uma creche filantrópica, sem fins lucrativos, que atende aproximadamente a 150 crianças de três meses a seis anos. A creche localiza-se próximo à Universidade Federal de Santa Catarina em um bairro com vulnerabilidade socioeconômica e consiste numa casa de dois andares, compreendendo seis salas para as turmas divididas por faixa etária, um pátio com parquinho, dois refeitórios coletivos para as crianças, um refeitório para os professores, além de copa, cozinha, sala da brinquedoteca, uma sala de biblioteca, banheiros e outras duas salas para a direção da creche.
O objetivo principal da brinquedoteca é proporcionar atividades lúdicas para as crianças que freqüentam a creche, desenvolver a cooperação entre elas, possibilitar um espaço para brincadeiras não dirigidas, espontâneas, além de transmitir a pais e professores conhecimentos sobre a importância do brincar para o desenvolvimento das crianças e produção de conhecimento científico sobre desenvolvimento infantil. Para a creche, a brinquedoteca constitui-se em um local ímpar, sendo valorizado pelas professoras e pela direção, como visto em avaliação no final do semestre. É um local integrado com o restante da creche: professoras, direção, voluntárias, crianças, pais, sendo também um local de aprendizagem para todos os envolvidos.
Uma das características da brinquedoteca é oferecer mais opções de brinquedos do que aquelas oferecidas em sala de aula, visando resgatar a cultura lúdica tradicional. Para o funcionamento da brinquedoteca há duas monitoras, chamadas brinquedistas, cujo papel é mediar a relação da criança com o brinquedo, como aponta Valle et al. (2002). O papel do brinquedista também inclui deixar as crianças brincarem espontaneamente na brinquedoteca, sem imposição de brinquedos ou brincadeiras, atuando na mediação de conflitos por brinquedos; oferecer opções de brinquedos, mas deixando as crianças livres para escolherem; auxiliar no manuseio dos brinquedos (ANDRADE, 1998; DANTAS, 1998). Em muitas situações as crianças convidam as brinquedistas para participarem das brincadeiras; nesse caso, o papel do brinquedista também inclui participar com as crianças da brincadeira como uma delas.
O funcionamento da brinquedoteca
O funcionamento da brinquedoteca no projeto “BrinquedoAção: aprendendo e se divertindo com brinquedos” consistia em levar cada turma uma hora por semana à sala da brinquedoteca, cedida pela creche para este fim.
A sala da brinquedoteca fica localizada no piso inferior da creche e compreende aproximadamente 15m2, com duas portas, uma janela, armários e estantes com prateleiras e gavetas onde ficam brinquedos diversos, além de quatro mesinhas infantis com cadeiras ao centro. Alguns dos armários são utilizados pela creche para guardar materiais variados de uso interno.
Cada turma, que tinha em torno de 23 crianças, era dividida em dois grupos, ficando cada grupo 30 minutos na sala. Essa medida foi tomada devido ao número elevado de crianças por sala e a restrição do espaço físico da escola. A única turma que não ia efetivamente à sala da brinquedoteca era a dos bebês (com idades entre três meses a um ano), devido à quantidade de bebês (aproximadamente vinte) e a pouca quantidade de brinquedistas para ficarem com todos na sala, além do risco de que engolissem alguma peça muito pequena. No entanto, em questionário aplicado às professoras para avaliação do projeto, foi sugerido que os bebês fossem até a brinquedoteca com a participação das brinquedistas e das professoras na brinquedoteca. A sugestão baseava-se na possibilidade de oferecer aos bebês um espaço diferente daquele da sala de aula, com diferentes estímulos, o que vem ao encontro da função da brinquedoteca. Em próximas edições do projeto, pretende-se alterar a participação dos bebês na brinquedoteca conforme sugerido pelas professoras.
É importante ressaltar que o presente relato de experiência é genérico, não pretendendo aprofundar em nenhum aspecto específico. Isso se deve ao fato de o próprio ambiente da brinquedoteca ser rico em possibilidades de observação e de vivências e também a pouca experiência das brinquedistas, que foi de apenas um ano e que também contou com uma grande variedade de acontecimentos.
Em um primeiro momento de aproximação das novas brinquedistas do projeto foi realizada com as crianças uma atividade de construção de regras para o funcionamento da brinquedoteca. A atividade consistia em conversar com as crianças sobre o que poderia e o que não poderia ser feito na brinquedoteca a partir das respostas uma das brinquedistas escrevia em um papel pardo. Todas as turmas tiveram seu cartaz colado nas paredes da brinquedoteca.
A princípio, esta atividade consistia em partir do que as crianças já sabiam sobre o funcionamento da brinquedoteca de anos anteriores ou do que ouviam falar dentro da creche. A ideia foi não impor para as crianças mais regras além das existentes na creche, mas em levá-las a perceber o que podem fazer dentro do espaço da brinquedoteca, fazendo com que também fossem responsáveis pelos brinquedos (FREIRE, 1985; FRIEDMANN, 1998b).
Ao longo das sessões na brinquedoteca foi possível perceber mudanças no comportamento das crianças e o envolvimento delas com o projeto e também o envolvimento por parte das professoras e da direção com a brinquedoteca. Por exemplo, quando as brinquedistas chegavam na creche, as crianças perguntavam se iriam naquele dia à brinquedoteca, ou, quando passavam em frente à sala, ficavam olhando e comentando sobre a brinquedoteca. Já com as professoras e a direção, o envolvimento deu-se com a convivência diária em momentos informais com perguntas sobre o andamento do projeto.
O brincar das crianças na brinquedoteca
A participação em uma brinquedoteca permite ao adulto um olhar diferenciado sobre o desenvolvimento infantil. Dentro da brinquedoteca é possível perceber conflitos entre as crianças e também maneiras que elas mesmas encontram de solucioná-los e o próprio desenvolver da criança, nos mais diversos âmbitos.
Brincadeiras coletivas, em grupos de três a quatro crianças, são mais frequentes, no entanto também há crianças que brincam sozinhas. Nesses casos, o brinquedista acompanha o brincar em grupo com um enfoque mais em mediar possíveis conflitos por brinquedos. Já quando uma criança brinca sozinha, o brinquedista aproxima-se da mesma e, se convidado, participa da brincadeira. Na maioria dos casos o brinquedista acaba brincando junto ou ajudando a criança com regras, em caso de jogos.
Um dos principais desafios impostos ao brinquedista é o de mediar a relação em que mais de uma criança quer o mesmo brinquedo. Em todas as turmas que vão até a sala da brinquedoteca, esse tipo de comportamento aparece. Num primeiro momento é perguntado às crianças quem pegou o brinquedo primeiro, depois é preciso explicar que os brinquedos são de todos e pedir para cada uma brincar um pouco. Na prática cotidiana não é tão simples assim. Acontecem episódios de choros, birras, bater no colega, não emprestar o brinquedo, desistir do brinquedo, mas também episódios em que as próprias crianças encontram a solução de partilhar o brinquedo, cada uma brincando um pouco. Conforme Friedmann (1998b), estes são os sentimentos de posse que a brinquedoteca vem para desmistificar, pois os brinquedos que lá estão são de uso coletivo, objetivando gerar nas crianças comportamentos de responsabilidade e cooperação.
Durante a conversa com a turma de cinco a seis anos foi possível escutar relatos demonstrando laços afetivos com as brinquedistas tais como: “eu gosto de brincar com você” ou “eu gosto de jogar jogo da memória com você”. Frases como essas demonstram um laço de afetividade estabelecido entre as crianças e as brinquedistas do projeto. Além disso, demonstram a ligação positiva entre as crianças e o espaço da brinquedoteca, sendo esta a motivação das brinquedistas para as atividades lúdicas no espaço da brinquedoteca (FRIEDMANN, 1998b).
A partir dessas considerações é possível compreender o apego e a afetividade como bases sólidas para uma relação, especialmente uma relação estabelecida por uma criança. Dois exemplos ilustram esta relação: o primeiro de uma menina de cinco anos que ia à brinquedoteca e brincava somente com o jogo da memória ou desenho com uma das brinquedista, após a mesma ter conversado um dia com a menina, pois a mesma estava triste e choramingando. O fato é que a mesma se apegou a tal brinquedista de maneira que na brinquedoteca gostava somente de brincar com ela, relatando isso na conversa realizada com sua turma. O segundo exemplo é também de uma menina com aproximadamente um ano que chorava muito e tentava ficar próximo da professora quando as brinquedistas iam até a sua sala para brincar. Com base na descrição dos comportamentos indicadores de afeto inseguro assinalado por Oliveira, Vieira e Cordazzo (2008), a menina supracitada preenche alguns desses indicadores como, por exemplo: dificuldade de separar-se do objeto de apego, no caso da professora; dificuldade de ser confortado, pois mesmo no colo de uma brinquedista a menina continuava chorando; quando parava de chorar e a brinquedista tentava colocá-la no chão para brincar a menina voltava a chorar. Não é possível inferir alguma causa ou responsabilidade pelo comportamento da menina; no entanto, foi possível perceber sua dificuldade em afastar-se fisicamente da professora.
Durante o ano foi realizada uma atividade fora da brinquedoteca, levando as crianças de quatro a seis anos para a universidade para utilizarem as quadras esportivas. Nessa atividade, foram realizadas brincadeiras com bola, tais como futebol e basquete, com bambolê e com corda. As professoras das respectivas turmas acompanharam essa atividade. Partiu-se do princípio de as crianças ocuparem um espaço diferente daquele da creche ao qual estão acostumadas, conhecendo assim a região onde moram e de a universidade disponibilizar para a comunidade local suas instalações. Com essa atividade foi possível propiciar às crianças o desenvolvimento de atividades físicas e psicomotoras, como apontam Oliveira et al. (2008). Esse é um investimento de longo prazo para o desenvolvimento do indivíduo, assim como Piaget enfatiza: o desenvolvimento físico e motor atuam como uma espécie de mola propulsora para o desenvolvimento cognitivo (OLIVEIRA et al., 2008).
Com os bebês também é possível fazer esta relação entre a importância do desenvolvimento psicomotor e o desenvolvimento cognitivo. Aos bebês eram levados brinquedos que visavam estimulá-los no sentido de descobrirem o mundo por meio do toque e da manipulação e também de seus próprios corpos, tornando, assim, possível acompanhar o desenvolvimento dos bebês no andar e no falar ao longo do ano.
Um episódio chamou a atenção na brinquedoteca: duas crianças, de aproximadamente um ano e meio, não iam para a sala da brinquedoteca com as brinquedistas. A princípio a opção delas foi considerada, pois com as crianças da mesma sala não havia esse tipo de ocorrência. As brinquedistas então decidiram passar mais tempo com elas na sala de aula ao invés de irem até a brinquedoteca para que as crianças pudessem se acostumar com as mesmas. Então, novamente as crianças voltaram à brinquedoteca e as duas que se negaram da primeira vez, continuavam se negando. A pedido das brinquedistas, uma das professoras da sala de aula acompanhou as crianças até a brinquedoteca, inclusive as que não queriam ir. Na sala da brinquedoteca a professora retirou-se e as duas crianças passaram a chorar a maior parte do tempo, não brincando nem interagindo com as demais crianças ou brinquedistas, ficando sempre próximas à porta de saída. Foi então solicitado que uma das professoras acompanhasse as crianças na brinquedoteca por todo o tempo em que estivessem lá. Uma das crianças, uma menina, logo acostumou-se com o lugar e com as brinquedistas e passou a brincar normalmente. Quando a professora ensaiava sair, logo começava a chorar. Com o passar do tempo e com a proximidade com as brinquedistas, no entanto, este tipo de comportamento extinguiu-se. A outra criança, um menino, teve esse processo de adaptação mais prolongado devido ao número de faltas à creche e consequentemente à brinquedoteca. Mas ao final do ano ele passou a freqüentar a sala sem choros e brincando com os brinquedos e com as brinquedistas, sem a presença da professora, apesar de ainda continuar próximo à porta.
Piaget coloca que a criança desenvolve uma noção chamada de objeto permanente, isto é, o objeto sai do campo de visão da criança, mas ela sabe que ele continua a existir (FLAVEL, MILLER, MILLER, 1999). Com essas duas crianças, especialmente com o menino, foram feitas brincadeiras neste sentido, sumir e aparecer, como uma tentativa de desenvolver esta noção, percebendo que mesmo a professora não estando presente na brinquedoteca ela não havia sumido. Apesar de não ter sido um experimento controlado, parece que a iniciativa pode ter auxiliado para que as crianças generalizassem esta noção, pois ambas mudaram de comportamento no decorrer do ano.
Outro fato, especialmente marcante com esta mesma turma, foi o desenvolvimento da linguagem. Vygotsky (1991, p. 25) afirma que “a fala tem um papel essencial na organização das funções psicológicas superiores”, ou seja, com o desenvolvimento da fala outras funções psicológicas são desenvolvidas e foi isso que era possível notar nas crianças. Ao final do ano, elas já estavam falando bastante comparadas ao início do projeto e também mais autônomo em relação aos brinquedos e às brincadeiras, relacionando com a capacidade de simbolização.
Uma das brincadeiras recorrentes na brinquedoteca eram as cantigas infantis e a brincadeira do boi de mamão, tradição açoriana perpetuada em Florianópolis. As brinquedistas, juntamente com as crianças, cantavam cantigas infantis e de roda assim como as cantigas do boi de mamão. Esse parece ser um ponto central para a questão da cultura lúdica, na perpetuação da cultura local às crianças, numa maneira de que estas tradições açorianas permanecem vivas no folclore local.
Avaliação do projeto
Ao final do semestre de 2009 foi elaborado um questionário com objetivo de realizar uma avaliação do projeto da brinquedoteca com as professoras e a direção da creche, 17 pessoas no total. Uma das questões referia-se à relevância do projeto para as crianças. Constatou-se que 100% das respostas indicavam o projeto relevante para as crianças, tendo 65% julgado o projeto “ótimo”. Outra questão era sobre a continuação do projeto. Todos também indicaram que o projeto deveria ter continuação, sendo apontados alguns aspectos para melhorá-lo, como mais diálogo com as professoras sobre o comportamento das crianças na brinquedoteca.
A partir desses resultados, é possível perceber que o projeto já faz parte do cotidiano da creche, sendo julgado por professoras e pela direção como relevante para as crianças. Como destacam Muniz (2002) e Benedet (2007), na institucionalização de uma brinquedoteca como parte integrante da instituição de ensino, corre-se o risco de a mesma perder o seu caráter lúdico, por essência, transformando-se, somente, em um espaço com brinquedos. A brinquedoteca do projeto está presente na creche desde 2005, sendo, portanto, parte integrante da rotina da creche. A institucionalização é um risco, mas também é necessária para o fortalecimento do brincar espontâneo das crianças. A brinquedoteca do projeto está comprometida com a creche e também com o seu objetivo maior de oferecer às crianças um espaço lúdico.
Com as crianças também foi realizada uma avaliação do projeto por meio de uma roda de conversa. Porém, essa conversa aconteceu somente com a turma entre cinco e seis anos de idade. Na conversa foi perguntado com o que gostavam e com o que não gostavam de brincar e as respostas foram: de boneca, de carrinho, desenhar, jogar, com fantasias e com o carrinho de cachorro-quente. As respostas de meninos e meninas dividiram-se em um brincar estereotipado: “Os meninos preferem o brincar turbulento como pular, rolar e lutar; enquanto que as meninas, geralmente brincam com temas relacionados ao lar” (MACARINI; VIEIRA, 2006, p. 50). É comum, na brinquedoteca, o brincar de meninas estar mais ligados a atividades como varrer, “fazer comidinha”, cuidar do bebê, brincar de casinha, e dos meninos em brincar de super-herói, de motoca, de bola, jogar objetos de um lado a outro da sala e também atividades técnicas, como marceneiro, caminhoneiro, engenheiro. No entanto, em alguns momentos apareceram falas do tipo “isso é brincadeira de menina” e outras ” mas menino também pode brincar de boneca”. Isso demonstra certa estereotipia na escolha das brincadeiras, mas também uma mudança nos valores sociais relacionados ao gênero.
Sobre o que não gostavam de fazer na brinquedoteca, as respostas foram quase unânimes ao falar em guardar os brinquedos, arrumar a sala e sair da sala. Esse dado demonstra como as crianças ficam à vontade dentro da brinquedoteca na construção de um mundo lúdico e a saída do mesmo constitui-se em uma obrigação. Friedmann (1998b) aponta que esse comportamento é típico e apresenta uma solução: avisar antecipadamente às crianças o horário de ir embora e guardar os brinquedos. Esta medida foi tomada pelas brinquedistas pela dificuldade em encerrar a brincadeira com as crianças e levá-las novamente para a sala de aula. Em um primeiro momento foi complicado, mas associada com outras medidas, como conversar com as crianças sobre as regras combinadas anteriormente, sobre as atividades a serem desenvolvidas em sala de aula com a professora, sobre aspectos físicos do corredor, como uma espécie de continuação da brincadeira, o resultado esperado foi atingido.
Outra característica das brincadeiras que ocorriam na brinquedoteca é a alteração do espaço físico. Era comum as crianças mudarem de lugar mesinhas e cadeiras para transformá-las em partes das brincadeiras de fazer comidinha e de casinha. Esse fato demonstra uma dinamização do espaço e a necessidade da criança em adaptar o espaço em que está inserida para a brincadeira.
Considerações finais: o direito de brincar
O direito da criança à liberdade de brincar e desenvolver-se no seio de sua família e de sua comunidade é assegurado pela Declaração Universal dos Direitos das Crianças (1959), adotado pelas Nações Unidas. Semelhante à Declaração, no Brasil há uma lei específica, o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), que compreende a criança como sujeito de direitos. Em seu artigo 15, o Estatuto assegura o direito da criança e do adolescente à liberdade, ao respeito e à dignidade, sendo liberdade de brincar.
Custódio e Veronese (2007) fazem um resgate histórico do trabalho infantil no Brasil e as consequências drásticas para a infância, apontando que ao não poder brincar a criança assimila desde novas regras do trabalho, podendo ter má-formação no seu desenvolvimento, além de não poder fazer aquilo que lhe é assegurado: brincar.
O principal objetivo deste projeto é assegurar à criança este direito básico: brincar, poder ser criança e desenvolver-se por completo dentro de um ambiente propício. A concepção de infância ao longo da história da humanidade já mudou e hoje é reconhecida como uma fase essencial para a constituição do sujeito. Para que esta constituição seja integral é necessário um ambiente que possibilite experiências e novas relações, sendo esse o papel por excelência da brinquedoteca: oferecer um espaço para que as crianças sejam sujeitos ativos. A brinquedoteca também surge como um espaço para o desenvolvimento de pesquisas e produção de conhecimento sobre a infância, sendo um espaço em que a criança pode brincar por si mesma.
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Sobre os autores:
Fabiane Vieira da Rosa é graduanda do curso de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Trabalhou como bolsista no projeto de extensão “Aprendendo e se Divertindo com Brinquedos” na brinquedoteca de uma instituição filantrópica de educação infantil. E-mail: [email protected]
Helena Kravchychyn é graduanda do curso de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Trabalhou como bolsista no projeto de extensão “Aprendendo e se Divertindo com Brinquedos” na brinquedoteca de uma instituição filantrópica de educação infantil. E-mail: [email protected]
Mauro Luís Vieira obteve o título de doutor em Psicologia Experimental pela Universidade de São Paulo. Pósdoutorado na Dalhousie University em Halifax (Canadá). Atualmente é professor do Departamento de Psicologia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Trabalha na linha de pesquisa sobre cuidados parentais e desenvolvimento infantil no Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFSC. Coordena o Núcleo de Pesquisa sobre Desenvolvimento Infantil. É pesquisador do CNPq. E-mail: [email protected]