Alfabetização precoce é perda de tempo
Alfabetização precoce é perda de tempo |
Para acontecer com sucesso, a alfabetização deve esperar que etapas anteriores estejam muito bem construídas e assimiladas.
Passamos tanto tempo recebendo e transmitindo informações por meio da linguagem escrita que ela nos parece quase tão espontânea quanto a comunicação oral. No entanto, não há nada de natural na leitura. Não existe no cérebro nenhuma sequer região especialmente dedicada à decodificação de símbolos que representem palavras. Trata-se de uma habilidade tão complexa que o cérebro precisa se adaptar a ela, criando um circuito neural que envolve diversas áreas – visual, auditiva e de linguagem.
A maioria de nós esqueceu como foi lento e trabalhoso o processo de aquisição da capacidade de leitura. O fato é que essa transformação no cérebro não acontece e nem pode acontecer de uma hora para outra. É um trabalho em etapas que, por ansiedade dos pais e como consequência inesperada da incorporação do antigo pré ao sistema básico de ensino, em 2004, vem sendo antecipado por muitas instituições de ensino no Brasil.
Não seria lógico concluir que, por se tratar de algo complexo, a linguagem escrita deveria começar a ser ensinada o quanto antes? Sim e não: se considerarmos que o contato com os livros, as brincadeiras de consciência fonológica, as histórias e as rimas recitadas e cantadas estão formando conexões no cérebro que serão importantes para a aquisição da capacidade de ler, esse processo deve sim começar cedo. Já a alfabetização propriamente dita, para acontecer com sucesso, deve esperar que etapas anteriores estejam muito bem construídas e assimiladas. No entanto, grande parte das escolas e muitos pais esperam que as crianças cheguem ao segundo ano sabendo ler e escrever. Neste nível, a maioria dos alunos tem entre cinco e seis anos de idade – fase em que não estão neurologicamente prontos para começar a ler. Algumas áreas do cérebro envolvidas na leitura, como o giro angular, não estão suficientemente desenvolvidas para que a decodificação faça algum sentido.
Muitas crianças memorizam letras ou mesmo sílabas, reproduzem palavras inteiras e escrevem seu nome por volta dos quatro anos de idade – o que não significa que isso tudo esteja sendo compreendido por elas. Na verdade, nessa idade elas têm uma memória excelente, mas geralmente não estão maduras para entender a linguagem escrita.
Estudos mostram que essa maturidade geralmente ocorre entre seis de sete anos, quando acontece o que o neurocientista cognitivo Stanislas Dehaene chama de “revolução mental” em seu livro Os Neurônios da Leitura (Penso Editora). É quando a criança começa a perceber que a palavra pode ser quebrada em diferentes fonemas. No entanto, nenhum cérebro é igual ao outro, e sempre haverá variações na facilidade com que cada um se familiariza com a linguagem escrita, o que traz à escola o desafio de conhecer e respeitar o ritmo dos alunos.
Antes de estabelecer a chamada consciência fonológica, portanto, forçar a alfabetização é perda de tempo. Um tempo que pode ser muito bem aproveitado, pois crianças em idade pré-escolar estão em pleno desenvolvimento de sua consciência metalinguística e ampliando diariamente seu vocabulário. Estudos mostram que, aos três anos de idade, elas ganham a capacidade de absorver a quantidade impressionante de até 20 palavras novas por dia, enquanto assimilam naturalmente complexas regras gramaticais.
Em vez de forçar um cérebro ainda imaturo a relacionar letras a sons, poderiam estar exercitando a linguagem oral e suas habilidades metalinguísticas e, assim, familiarizando-se com a complexidade das construções sintáticas que seu idioma oferece. Muito mais importante que começar cedo é relacionar a leitura a algo agradável e prazeroso e não a um desafio penoso. Para isso, é necessário que pais e educadores respeitem o ritmo e a maturidade de criança para então iniciar a alfabetização.