A literatura é o instrumento mais potente para pensar o mundo
A literatura é o instrumento mais potente para pensar o mundo – Professor da USP diz que quarentena pode ser oportunidade de inspiração e reflexão através dos livros.
Por Claudia Costa / Jornal da USP
A falta de tempo é uma das desculpas mais utilizadas para não ler. Mas, como lembra o professor Maurício Santana Dias, que leciona Literatura Italiana e Estudos da Tradução no Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, neste momento em que a pandemia de covid-19 exige recolhimento, o que mais se tem é tempo para leitura. “A literatura se torna um dos instrumentos mais potentes para se pensar o mundo. Não exclusivamente a literatura de ficção, que abre muitos horizontes e campos para uma história possível, mas a literatura em seu sentido mais amplo, que envolve as humanidades, as ciências sociais, a filosofia e a história”, ressalta. Através dela, diz, podemos nos reconectar com a nossa experiência neste mundo tão difícil e estranho que estamos vivendo hoje.
Além disso, aponta Dias, a literatura vai muito além do entretenimento. “Ela nos faz pensar, nos faz dar sentido às coisas, nos faz pensar em novas formas de vida. E, neste momento, precisamos repensar nossa situação no mundo”, considera o professor, que acaba de receber, por sua trajetória de mais de 25 anos em atividades de tradução, o Prêmio Nacional de Tradução do Ministério de Bens Culturais e do Turismo da Itália, em cerimônia realizada no dia 27 de fevereiro passado no salão da Biblioteca Angelica de Roma, biblioteca pública mais antiga da Europa ainda em funcionamento. O professor ficou na Itália até o dia 2 de março, uma semana antes do fechamento do país, até então epicentro da pandemia da covid-19.
Para o professor, a literatura italiana ainda não tem no Brasil a mesma presença das literaturas francesa e inglesa, mas tem crescido de forma contínua e consistente, com grandes editoras publicando obras completas de autores italianos. “Só para citar alguns, Ítalo Calvino já está com quase a totalidade da sua obra publicada pela Companhia das Letras, assim como Umberto Eco, tanto a sua literatura de ficção quanto a de ensaio de tratados de semiótica e filosofia, além de Primo Levi e Pirandello, autores com os quais eu venho trabalhando e que têm uma presença bastante consolidada entre os leitores brasileiros”, afirma.
Entre as indicações de leitura que o professor propõe durante esta quarentena obrigatória estão obras que fazem pensar sobre o momento atual. Uma delas é o livro de um autor pouco conhecido, o romancista e ensaísta italiano Guido Morselli, o inquietante Dissipatio H.G. – O Fim do Gênero Humano (Ateliê Editorial, 2001, com tradução de Dias), uma distopia em que, de um dia para o outro, toda a humanidade desaparece sem deixar vestígio, e o protagonista se vê sozinho no mundo.
Outra recomendação, também com tradução do professor, é 71 Contos de Primo Levi (Companhia das Letras, 2005), que reúne escritos do autor produzidos entre os anos 60 e início dos anos 80. Segundo Dias, esses contos antecipam muito do que estamos assistindo hoje. “Há muita ficção científica, conto fantástico, alguns alegóricos, que tratam desse mundo que podemos chamar de pós-humano ou pós-histórico”, completa. E ainda o recém-lançado As Pequenas Virtudes (Companhia das Letras), de Natália Ginzburg, que reúne 11 textos, situados entre o ensaio e a autobiografia, sobre perdas, desterros e alegrias.
Há ainda uma série de autores contemporâneos, como o filósofo italiano Giorgio Agamben, atualmente em destaque no Brasil, com obras que percorrem temas que vão da estética à política. Segundo o professor, Agamben é autor de livros importantes que pensam a situação contemporânea e os impactos no mundo de hoje. Entre suas obras, cita O que Resta de Auschwitz (Boitempo Editorial, 2008), que procura, a partir de uma análise profunda do papel do testemunho como documento histórico e de seus limites como relato pessoal, entender as dimensões da produção escrita dos sobreviventes do Holocausto nazista. O relato do escritor Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz, é matéria-prima para a análise de Agamben. Nas palavras do filósofo, “Auschwitz marca o fim e a ruína de qualquer ética da dignidade e da adequação a uma norma. A vida nua, a que o homem foi reduzido”.
Além disso, o professor salienta que há muitos cientistas sociais e pensadores da ciência que valeriam ser lidos neste momento. “O próprio Ítalo Calvino é um autor que deveria ser revisitado”, destaca, recomendando dois títulos dele: As Cidades Invisíveis (Companhia das Letras, 1990), em que a cidade deixa de ser um conceito geográfico para se tornar um símbolo complexo e inesgotável da experiência humana, e, na linha do fantástico e alegórico, As Cosmicômicas (Companhia das Letras, 1992), que mistura ciência e literatura para narrar histórias inspiradas em figuras como Giordano Bruno, Samuel Beckett, Lewis Carrol, Jorge Luis Borges e o marinheiro Popeye. Há também dois títulos de Pasolini, que acabam de ser publicados pela Editora 34: Poemas e Escritos Corsários.
Maurício Santana Dias é graduado em Português-Italiano pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com mestrado em Ciência da Literatura pela mesma faculdade e doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, onde leciona desde 2004.