Alfabetização na BNCC: dá para ser no 2º ano, mas o professor não pode ficar sozinho
No estado de São Paulo, a alfabetização até o 2º ano do Ensino Fundamental já é uma exigência. (Foto Mariana Pekin)
Por: Mara Mansani
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Vocês devem ter acompanhado que, na última quinta-feira (6/4), o Ministério da Educação (MEC) apresentou a terceira versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Esse documento, inédito no Brasil, tem o objetivo de garantir a equidade, isto é, o acesso igualitário à aprendizagem. Para isso, ele define os conhecimentos, as habilidades e as competências essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo da Educação Básica, em escolas públicas e particulares de todo o país.
Esse momento histórico na Educação Brasileira, porém, vem carregado de dúvidas, apreensões e polêmicas. Mas isso é natural. Afinal, além da complexidade do tema, há o ineditismo da ação. Esta é a primeira vez que se tenta construir uma base curricular única para o todo o Brasil, que vai, de fato, influenciar as políticas públicas.
Como professora dos anos iniciais, é inevitável que a minha maior preocupação é saber como fica a alfabetização na BNCC. E é justamente na alfabetização que está uma das grandes polêmicas até agora. O documento prevê que todos os alunos estejam alfabetizados até o 2º ano do Ensino Fundamental. Não seria cedo demais?
Vou falar pela minha experiência de trinta anos em sala de aula. Acho que o maior obstáculo da alfabetização não é o tempo menor – tanto que aqui, em São Paulo, a Secretaria de Educação do Estado já trabalha com essa perspectiva há algum tempo, e ela têm se mostrado factível. São outros fatores que preocupam, como classes superlotadas, formação deficitária do professor e falta de apoio material. É preciso oferecer uma formação mais focada em alfabetização e mais recursos, como livros de literatura infantil, alfabetos móveis, obras de referência para os docentes, entre outros.
Então, respondendo à questão que dá título a esse texto. É, sim, possível alfabetizar os alunos até o 2º ano, desde que se garanta algumas condições para que o professor consiga trabalhar bem e cumprir o objetivo.
A pergunta que fica é: os gestores públicos serão capazes de mudar a visão para garantir as condições necessárias para alfabetização dos alunos ou essa pressão vai ficar mais uma vez somente sobre o professor?
A resposta para essa pergunta, só o futuro dirá. Por ora, o que podemos fazer é analisar o documento em si. E, na minha opinião, ele traz pontos positivos, sobretudo na organização dos conteúdos.
A BNCC descreve que a disciplina de Língua Portuguesa tem por objetivo “garantir o acesso aos saberes linguísticos necessários para a participação social e o exercício da cidadania, pois é por meio da língua que o ser humano pensa, comunica-se, tem acesso à informação, expressa e defende pontos de vista, partilha ou constrói visões de mundo e produz conhecimento”. Língua Portuguesa integra a área de conhecimento “Linguagens”, que se divide em cinco eixos: oralidade, leitura, escrita, conhecimentos linguísticos e gramaticais e educação literária. Logicamente, que esses cinco eixos devem ser desenvolvidos de forma integrada.
Outro ponto positivo do documento é a explicitação de dez considerações sobre o processo de alfabetização, que tratam de forma clara e simples o que o aluno tem que compreender. Elas tratam da aprendizagem do alfabeto, das convenções da escrita, das regras ortográficas, entre outras coisas. Num primeiro momento, parecem coisas óbvias, mas, analisando profundamente, cheguei à conclusão de que essas considerações podem ajudar muito professores sem grande experiência, que desconhecem os objetivos básicos que seus alunos devem alcançar.
Além disso, cada eixo é dividido e explorado em unidades temáticas, objetos de conhecimento e habilidades necessárias para dominar cada um deles. Em Língua Portuguesa, por exemplo, fica mais clara a associação entre as práticas de leitura e oralidade e as de escrita, coisas que tendem a ser vistas de forma separada, mas que, na verdade, precisam andar juntas na alfabetização.
Para que você, querido colega alfabetizador, compreenda melhor o que estou dizendo, recortei do documento trechos dos cinco eixos da disciplina de Língua Portuguesa para o 1º ano, destacando uma unidade temática de cada um. Deixei um breve comentário sobre cada parte. Veja só e, no final, me dica o que está pensando sobre o assunto:
- EIXO ORALIDADE – Práticas de compreensão e produção de textos orais em diferentes contextos discursivos.
- UNIDADE TEMÁTICA: Produção de textos orais em situações específicas de interação
- OBJETOS DE CONHECIMENTO: Relato oral
- HABILIDADE: Relatar experiências pessoais de seu cotidiano, em sequência cronológica e nível de informatividade adequado.
COMENTO: a presença desse eixo mostra que as produções de textos em sala nem sempre são escritas. Os textos orais fazem parte do dia a dia e a BNCC quer garantir que eles sejam desenvolvidos na escola. As rodas de conversa são ótimos momentos para se explorar essas práticas.
- EIXO LEITURA – Práticas de compreensão e interpretação de textos verbais, verbo-visuais e multimodais. Textos do cotidiano próximo e da vivência e interesse do aluno, com imagens que forneçam informações adicionais, tema apropriado à faixa etária do leitor (crianças) e nível de textualidade adequado: vocabulário previsível, orações e períodos curtos e recursos expressivos predominantemente denotativos; no caso de textos verbais, com aproximadamente 200 palavras.
- UNIDADE TEMÁTICA: Estratégias de leitura
- OBJETOS DE CONHECIMENTO: Reflexão sobre o conteúdo temático do texto
- HABILIDADE: Identificar a função sociocomunicativa de textos que circulam em esferas da vida social das quais participa, reconhecendo para que tais textos foram produzidos, onde circulam, quem produziu, a quem se destinam.
COMENTO: Confesso que minha expectativa em relação à leitura era maior. Acredito que dá para ir muito além na exploração em sala de aula. Dá para trabalhar textos maiores que 200 palavras no 1º ano, por exemplo. Para se ter uma ideia, uma lengalenga simples e popular como Tangolomango já tem 157 palavras. De qualquer forma, se por um lado a proposta é tímida, por outro o documento não impede o professor de ir além.
- EIXO ESCRITA – Práticas de escrita de palavras e frases e de pequenos textos.
- UNIDADE TEMÁTICA: Apropriação do sistema alfabético de escrita
- OBJETOS DE CONHECIMENTO: Escrita de palavras e frases
- HABILIDADE: Escrever, espontaneamente ou por ditado, palavras e frases de forma alfabética – usando letras/grafemas que representem fonemas.
COMENTO: o mesmo que falei sobre o eixo Leitura vale para o eixo Escrita: precisamos garantir o que especifica a Base, mas dá para ampliar as possibilidades de escrita, se for possível e ou necessário.
- EIXO CONHECIMENTOS LINGUÍSTICOS E GRAMATICAIS – Compreensão e apropriação do sistema alfabético de escrita, reflexão sobre convenções gráficas da escrita e ampliação do léxico (vocabulário).
- UNIDADE TEMÁTICA: Apropriação do sistema alfabético de escrita
- OBJETOS DE CONHECIMENTO: Compreensão do sistema alfabético de escrita
- HABILIDADE: Reconhecer o sistema de escrita alfabética como representação dos sons da fala.
COMENTO: Esse eixo contempla aquelas atividades de escrita que levam os alunos a pensar em como escrever, em quantas e quais letras usar. Nessa reflexão, ao levantar hipóteses e pôr em jogo tudo o que sabe, ele avança rumo a escrita alfabética. Um exemplo é a escrita de uma lista de compras da família. Ou seja, é algo que já se faz presente em nosso cotidiano na sala de aula, e que pode ser positivo.
- EIXO EDUCAÇÃO LITERÁRIA – Práticas de leitura e reflexão para apreciar textos literários orais e escritos.
- UNIDADE TEMÁTICA: Categorias do discurso literário
- OBJETOS DE CONHECIMENTO: Elementos constitutivos do discurso poético em versos: estratos fônicos e semântico
- HABILIDADE: Reconhecer, em textos versificados, rimas, sonoridades, jogos de palavras, palavras, expressões, comparações, relacionando-as com sensações e associações.
COMENTO: Gostei muito do destaque dado à Educação literária. Afinal, é necessário cultivar o prazer da leitura desde cedo. E, como sempre digo aqui no blog, ninguém escreve do nada. Precisamos de bons modelos para desenvolver as nossas próprias produções. Na verdade, o que a Base faz é legitimar e garantir algo que já orienta a prática alfabetizadora de muitos professores Brasil afora.
Saio desse meu pequeno estudo inicial sobre a BNCC com uma visão relativamente otimista. A Base consegue expor com clareza aonde o aluno precisa chegar e garante pontos essenciais na alfabetização. Mas, se não houver formação e melhores condições de trabalho, o objetivo de antecipar para o 2º ano só vai gerar uma pressão extra e fracassará.
Bom, eu vou continuar minhas reflexões sobre a Base e gostaria muito de ouvir o que você tem a dizer sobre ela. Estude o documento e cobre apoio!
Fonte: Nova Escola